Apresentação
Há memórias que não se deixam enterrar, por mais que o tempo se esforce em cobri-las com suas camadas de esquecimento. Há dores que atravessam gerações, não porque se insistem nelas, mas porque elas insistem em nós. Entre as muitas heranças que o século XX legou à humanidade — o progresso tecnológico, a globalização, as promessas da democracia liberal —, há também a herança de uma falência moral profunda. Os campos de extermínio nazistas permanecem como marcos indeléveis de um colapso ético e civilizacional, diante do qual nenhuma consciência pode se manter indiferente.
Este livro nasce da necessidade de ir ao encontro desse colapso. De visitá-lo não como mero espectador, mas como alguém que busca compreender, testemunhar, co-testemunhar. Durante cinco anos, percorri os seis campos de extermínio nazistas reconhecidos pela historiografia — Auschwitz-Birkenau, Bełżec, Chełmno, Majdanek, Sobibór e Treblinka —, bem como outros locais de encarceramento e dor: Dachau, Plaszow, Mauthausen, Terezín. Em cada um desses espaços, não encontrei apenas ruínas ou silêncio. Encontrei o eco de gritos que ainda vibram na pedra, no solo, no ar. Gritos que exigem que não se esqueça, que não se apague, que não se repita.
E, no entanto, estamos perigosamente próximos de esquecer. Vivemos um momento em que o antissemitismo — essa ideologia milenar de ódio e exclusão — ressurge com força, reinventado, muitas vezes disfarçado sob o manto da crítica política, do humor ácido, da relativização histórica. Crescem o revisionismo, o negacionismo e uma espécie de anestesia moral coletiva diante dos sinais mais alarmantes de intolerância. Já não se trata apenas de ignorância. Trata-se de uma tentativa deliberada de apagar, de reescrever, de reabilitar discursos que pareciam definitivamente condenados pela História.
Essa urgência — a urgência de falar, de escrever, de lembrar — não é, pois, abstrata. É histórica. É política. É ética. É o dever de quem não viveu o horror diretamente, mas compreende que o silêncio dos vivos pode ser tão perigoso quanto a brutalidade dos algozes. Esta obra não pretende ser um tratado histórico, tampouco uma análise antropológica dos genocídios da Segunda Guerra. Ela é, antes de tudo, um gesto de memória. Um compromisso com aqueles cujas vozes foram silenciadas. E um apelo aos que, no presente, se esquecem de que o horror nunca começa com as câmaras de gás — mas com o discurso banal, a piada preconceituosa, a indiferença diante da dor alheia.
Ao caminhar pelos campos, não busquei apenas entender como se organizou o extermínio. Busquei algo mais inquietante: como foi possível que seres humanos, dotados de razão, cultura e fé, tenham sido capazes de transformar a morte em sistema, a crueldade em rotina, o assassinato em estatística. Em Auschwitz, diante das pilhas de sapatos infantis, dos cabelos amontoados, das malas com nomes ainda legíveis, não há como não sentir a falência de todas as ideias de progresso. É como se ali, no epicentro da modernidade europeia, a racionalidade tivesse se voltado contra o próprio homem. A fábrica de extermínio não foi o avesso da civilização — foi o seu subproduto mais sombrio.
Mas este livro também é movido por algo mais profundo: o temor de que, na ausência dos sobreviventes, a memória entre em declínio. Em breve, aqueles que viveram o inferno estarão todos ausentes. Não haverá mais braços numerados para nos mostrar. Não haverá mais olhos para nos contar o que viram. Seremos apenas nós — e nossa responsabilidade de manter a vigília. Quando não houver mais quem possa contar em primeira pessoa, restará o que escrevemos, o que documentamos, o que ousamos recordar. Por isso, este livro é também um chamado à resistência: contra o esquecimento, contra a banalização, contra o colapso moral que ainda ronda o presente.
Há quem questione o valor de se visitar um campo de extermínio. “Por que se expor à dor?”, perguntam. Mas a pergunta deveria ser outra: como não se expor? Como manter os olhos fechados diante do maior crime da história moderna? Visitar esses lugares não é um exercício de morbidez. É um exercício de humanidade. Porque, ao fazê-lo, tocamos as feridas que nos constituem, reconhecemos a nossa própria vulnerabilidade, e lembramos que a civilização é, no fundo, uma fina camada sob a qual espreita sempre a barbárie.
Aos poucos, percebi que minha jornada não era apenas histórica ou memorialística. Era também espiritual e existencial. Cada campo me colocava diante da pergunta fundamental: o que significa ser humano após Auschwitz? Como pensar a justiça, a empatia, a ética, depois que se tentou apagar um povo inteiro do mundo? Como olhar para o futuro sem compreender a profundidade da ferida que esse passado ainda impõe?
As páginas que seguem não oferecem respostas fáceis. Elas apenas tentam articular o peso do vivido, do sentido, do testemunhado. Dividi o livro em duas partes — uma dedicada aos campos de extermínio, outra aos campos de concentração e trabalho forçado — não para estabelecer hierarquias de horror, mas para organizar o impacto de minha experiência. Em Dachau, o horror tocou-me de forma pessoal, quando descobri que ali estivera confinado um de meus antepassados. O que era memória coletiva tornou-se, de súbito, íntima, familiar, visceral.
Dali em diante, compreendi que não há “outros” quando se trata do Holocausto. Todos estamos implicados. O que foi feito contra judeus, ciganos, eslavos, pessoas com deficiência, opositores políticos, homossexuais — foi feito contra a própria ideia de humanidade. Não há distância segura entre nós e eles. Há uma só história, uma só ferida, uma só advertência.
Este livro é, portanto, uma oferenda. À memória. À lucidez. À vigilância. Que ele possa servir não apenas como testemunho de minha travessia pessoal pelos lugares onde a morte foi protocolar, mas como instrumento de resistência contra tudo o que ameaça nos tornar novamente cegos, surdos e insensíveis.
Que nunca seja dito que sabíamos e nos calamos. Que nunca se diga que vimos — e olhamos para outro lado.
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