Capítulo 2 - Sob o Céu de Chumbo de Auschwitz: O VÁCUO E A CINZA – CHEGADA AO NÃO-LUGAR
O avião inclinou-se sobre a Polônia como uma agulha penetrando um véu de memória congelada. Lá embaixo, através da janela embaçada pelo sopro de minha própria ansiedade, Cracóvia desdobrava-se sob um manto de novembro: uma tapeçaria de telhados vermelhos esmaecidos, praças geometrizadas pela história, o serpentear lento do rio Vístula como uma cicatriz líquida dividindo a cidade. As árvores, esqueléticas, estendiam braços negros contra um céu de chumbo fundido. Uma neblina baixa, densa, sugava as cores, deixando tudo num tom sépia que parecia deliberado, como se a própria atmosfera conspirasse para manter o passado palpável. "Verde", havia escrito em meus apontamentos pré-viagem, mas o que via era um verde submerso, sufocado pelo cinza. A euforia que me tomara ao decolar de São Paulo transformara-se agora num frio profundo na espinha, uma antecipação solene que não era medo, mas o peso de um encontro marcado com o inefável.
Meus dedos apertaram o braço da poltrona. Estou aqui. A frase ecoava dentro do crânio, insuficiente. Durante anos – desde aquelas tardes intermináveis no colégio, debruçado sobre livros de capa dura com fotografias que me causavam náuseas e insônia, trocando teorias febrís com Marcus em ligações que se estendiam madrugada adentro – Auschwitz havia sido uma abstração geográfica, um símbolo gravado em preto-e-branco. Agora, pairando sobre a terra que o abrigava, o símbolo adquiria uma topografia implacável. Cada telhado, cada rua retilínea que se delineava na descida, transformava-se numa pergunta lancinante: Aqui? Aqui aconteceu? Meus olhos escaneavam o terreno desesperadamente, buscando não os marcos turísticos, mas os vestígios invisíveis. Onde estaria o gueto, aquele universo claustrofóbico de dor? A sinagoga que sobrevivera? O cemitério profanado? Tentava, com uma fixação quase patológica, sobrepor as imagens dos arquivos, dos filmes, das descrições minuciosas de Primo Levi, sobre a cidade pacata que emergia da neblina. Era um exercício fútil e obsessivo. O cérebro, intoxicado por décadas de estudo, recusava-se a aceitar a normalidade da paisagem abaixo. Setenta anos? Uma piscadela na história. Como podiam aquelas ruas calmas, aquelas luzes aconchegantes acendendo-se no crepúsculo precoce, existirem a apenas uma hora de carro do epicentro do horror? A dissonância era física, uma vertigem que me fazia fechar os olhos por segundos, respirando fundo o ar reciclado da cabine.
O toque das rodas no asfalto do Aeroporto João Paulo II foi um solavanco brusco na realidade. O avião taxiava, e com ele, a concretude da jornada. Ao meu lado, Bruno dormia um sono inquieto. Aquele reencontro inesperado, semanas antes da partida – o e-mail surgido do nada, a ligação imediata, a decisão fulminante de me acompanhar – era um raio de luz humana num empreendimento que eu imaginara solitário. Bruno não era apenas um amigo da faculdade; era um irmão de intelecto e sensibilidade, aquele com quem, no primeiro semestre, diante de um trabalho de Sociologia sobre totalitarismos, passáramos noites em claro discutindo Hannah Arendt e a banalidade do mal com a intensidade de quem desvendasse os segredos do universo. Ele entendia, sem precisar de explicações, por que eu precisava ir. Por que nós precisávamos ir. Quando os comissários anunciaram a chegada em polaco e inglês, ele abriu os olhos, turvos por um segundo, antes de fixar em mim um olhar que dizia tudo: Chegamos. O abismo nos espera.
O frio que nos acolheu ao desembarcar foi uma lâmina. Não o frio anedótico de invernos amenos, mas um frio úmido, denso, que se infiltrava pelas roupas e mordia a pele até os ossos. Parecia emanar não apenas da estação, mas da própria terra. Cracóvia, vista de perto, revelava-se uma dama de luto vestida com elegância desbotada. Os prédios da Cirenaica, o bairro onde ficava o aeroporto, ostentavam uma arquitetura sólida, às vezes austera, às vezes com detalhes art nouveau sob uma pátina de tempo e fuligem. No taxi rumo ao centro, observei avidamente. Tudo me parecia um palimpsesto. Os elegantes bondes amarelos deslizando sobre trilhos reluzentes? Imaginava-os, num corte brusco de imagem mental, abarrotados não de passageiros, mas de judeus sendo deportados, rostos aterrorizados pressionados contra os vidros. Um prédio administrativo imponente com janelas altas? Imediatamente o transformava, na mente febril, num quartel-general da SS. Até os paralelepípedos irregulares de certas ruas mais antigas pareciam guardar o eco de botas marchando. Sabia, racionalmente, que era injusto com a cidade, que ela havia sofrido, resistido, reconstruído-se. Sabia que seus habitantes provavelmente desejavam apenas viver, livres do fantasma constante da associação. Mas a mente, alimentada por anos de imersão traumática, funcionava como um projetor descontrolado, sobrepondo o passado ao presente com uma crueldade involuntária. "É difícil desligar, não é?" Bruno murmurou ao meu lado, seus olhos também perdidos na paisagem urbana que desfilava. Ele não precisava explicar o que via. Compartilhávamos a mesma projeção mental, o mesmo mal-estar diante da normalidade.
Nosso hotel ficava em Kazimierz, o antigo bairro judeu. A escolha fora deliberada. Queríamos estar imersos na memória, mesmo que diluída. Ao caminhar pela Rua Szeroka, o coração de Kazimierz, uma sensação ambígua tomou conta. Havia vida, sim. Cafés aconchegantes exalavam aroma de pão de centeio e café forte. Galerias de arte exibiam obras contemporâneas. Turistas fotografavam as sete sinagogas que sobreviveram, iluminadas contra o céu vespertino cada vez mais escuro. Mas era uma vida que parecia flutuar sobre um substrato de ausência. As paredes altas das casas, as vielas estreitas, as praças silenciosas – tudo respirava uma história interrompida. Sentia-se o vácuo deixado por uma comunidade vibrante, erradicada. Era como se o bairro carregasse uma cicatriz profunda, coberta por um curativo de normalidade turística que não conseguia esconder completamente a ferida. A sinagoga Remuh, a mais antiga, com seu pequeno cemitério onde lápides inclinadas como dentes cariados emergiam do solo congelado, era um testemunho silencioso e pungente. Ali, diante daquelas pedras gastas pelo tempo e pela profanação nazista, o peso da história tornou-se físico. Respirava-se um ar diferente, mais pesado, impregnado de luto secular. Não era apenas tristeza; era uma sensação de violação permanente.
No pequeno quarto do hotel, depois de deixar as malas, a iminência da visita a Auschwitz no dia seguinte pairou como uma presença sombria. Sentamo-nos à mesa de madeira escura, diante de janelas que davam para um pátio interno sombrio. A luz fraca de um abajur lançava sombras dançantes nas paredes. Bruno abriu uma garrafa de vodca polaca que comprara no caminho – "Para aquecer a alma", dissera. O primeiro gole foi um fogo líquido descendo pela garganta. Foi então que tentamos articular o inarticulável.
"Como definir Auschwitz?" Eu perguntei, mais para o ar do que para Bruno, olhando a névoa que começava a se formar do lado de fora. "Lemos tanto. Vimos tantas imagens. Mas o que é, realmente?"
Bruno ficou em silêncio por um longo momento, girando o copo entre os dedos, observando o líquido cristalino. "Um vácuo," ele disse finalmente, a voz baixa e carregada. "Como você mesmo escreveu antes de vir. Um não-lugar. Não é um cemitério comum, onde se enterra com ritual, com respeito, com a esperança de um além. Não é um memorial de guerra convencional, que celebra heroísmo ou lamenta perdas em batalha. É… um buraco negro na geografia humana. Um lugar concebido para aniquilar não apenas corpos, mas a própria ideia de humanidade, de memória, de existência individual. Um lugar onde a morte foi industrializada, burocratizada, esvaziada de qualquer significado transcendente. Onde se matava não por ódio pessoal, mas por eficiência administrativa. Isso é Auschwitz."
Suas palavras ecoavam minhas próprias reflexões mais sombrias. Auschwitz-Birkenau transcendia a categoria de "campo". Era uma anti-criação. Um monumento ao vazio. "E o mais paradoxal," continuei, o álcool afrouxando as amarras do pensamento, "é que esse não-lugar, esse vácuo que queremos instintivamente apagar da memória e da face da terra, é justamente o que mais precisamos preservar. A cada ano que passa, os sobreviventes se vão. As vozes diretas se calam. O passado torna-se… inalcançável. Abstrato. Uma nota de rodapé distante em livros escolares. Auschwitz físico, concreto, com seus trilhos, seus barracões, suas montanhas de cabelos e sapatos… ele força o confronto. Ele diz: Isto aconteceu. Aqui. Deste modo. É um espelho horrível que não podemos quebrar, por mais que queiramos desviar o olhar. Se o apagarmos, se o deixarmos apenas na memória etérea, a consciência coletiva trai as vítimas e prepara o terreno para que a nossa própria humanidade seja traída no futuro."
Bruno assentiu gravemente. "É a luta eterna entre o desejo de esquecer para sobreviver psicologicamente e o imperativo de lembrar para sobreviver moralmente. Auschwitz é o epicentro dessa tensão." Ele tomou outro gole. "Pensar que só ali… um milhão e trezentas mil almas. Só em Auschwitz. Um milhão e trezentas mil histórias, sonhos, talentos, amores, tristezas… apagadas." Ele fez uma pausa, os olhos perdidos na sombra. "É um número. Um número monstruoso. Mas tente imaginar… é como se toda a população de Trinidad e Tobago, ou da Estônia, ou de Timor Leste… desaparecesse. Varrida do mapa. Não em séculos, mas em poucos anos. Metodicamente. O que perdemos, além das vidas? Quantos Einsteins, quantos Freuds, quantos artistas, artesãos, pais, mães, crianças que poderiam ter mudado o mundo para melhor? A perda cultural, científica, social… é incalculável. Mas a perda emocional, o tecido rasgado da existência humana… isso é o vácuo verdadeiro. O vácuo que Auschwitz representa e que tenta sugar até nossa capacidade de sentir."
Falamos então das resistências que encontráramos. Dos colegas de trabalho perplexos, quase ofendidos, com a ideia de trocar férias na praia por uma peregrinação ao horror. "Mórbido," disseram. "Energia pesada." "Não vai te fazer bem." A família, preocupada, tentando dissuadir com argumentos de proteção: "Tanta coisa triste no mundo, pra que ir buscar mais?" "Lugar tão longe…". Até amigos próximos balançavam a cabeça, sem compreender. Bruno compartilhou experiências semelhantes. "Como explicar," ele ponderou, "que não é morbidez, mas uma necessidade quase fisiológica? Como dizer que é um ato de resistência contra o esquecimento, um dever de memória que vai além da piedade? Que é, de certa forma, uma tentativa desesperada de resgate pessoal – resgatar a própria humanidade ameaçada pela indiferença?"
Aquele resgate pessoal era o núcleo pulsante da minha motivação. Desde os tempos do colegial, quando as primeiras leituras sobre o Holocausto me deixaram enojado e fascinado ao mesmo tempo, uma inquietação profunda se instalara. O desconforto não era apenas intelectual; era visceral. Como seres humanos puderam conceber e executar tamanha barbárie? Como o mundo permitira? As conversas com Marcus, cheias de indignação juvenil e sede de compreensão, só aprofundaram o abismo de perguntas sem resposta. Livros, relatos, depoimentos, filmes – devorei tudo. Mas com o tempo, tornaram-se insuficientes. Era como estudar um vulcão apenas por relatos escritos; eu precisava sentir o calor do solo, cheirar o enxofre, ver a fenda fumegante. Precisava estar lá. Pisar o solo que absorvera tanto sangue inocente. Respirar aquele ar que carregava, imaginava eu, ecos de desespero. Era uma forma torta de homenagem? Um lamento monumental? Uma tentativa de expiação por um crime que não cometi? Talvez tudo isso. Talvez apenas a necessidade insana de tocar o inefável, de forçar uma conexão física com aquele abismo histórico que me assombrava. Quanto mais pensava, mais me sufocava num redemoinho sem saída. Ir pessoalmente era romper esse ciclo, enfrentar o monstro de frente, na sua própria caverna.
A noite em Cracóvia aprofundou-se. A vodca diminuía, mas a tensão aumentava. Saímos para caminhar, envoltos em casacos grossos, lenços cobrindo o rosto até os olhos. Kazimierz à noite era um universo de sombras e luzes amarelas. Os cafés ainda tinham movimento, risadas baixas escapavam pelas portas fechadas. Passamos pela Antiga Sinagoga, imponente e silenciosa, sua massa escura parecendo conter séculos de orações e pranto. Cruzamos pontes sobre o Vístula, o rio escuro refletindo as luzes da cidade como lágrimas de fogo. Cada passo era acompanhado pela sombra do amanhã. Auschwitz não era uma abstração distante mais. Era uma presença física, um tumor palpável a apenas sessenta quilômetros dali.
Ao voltarmos para o hotel, passando por uma rua estreita e deserta, paramos diante de um muro alto de tijolos. Marcas de impactos, talvez de balas muito antigas, ou apenas da erosão do tempo, manchavam a superfície. Sem dizer nada, Bruno e eu estendemos as mãos e tocamos a parede gelada. Foi um gesto instintivo, um tatear cego por uma conexão com o passado que parecia sussurrar através da pedra. Nenhuma epifania veio. Apenas o frio cortante, a aspereza do tijolo, e o silêncio esmagador da noite. Mas naquele toque, naquele silêncio compartilhado, havia uma preparação. Estávamos nos despojando das camadas protetoras da vida cotidiana, nos expondo, por vontade própria, ao vácuo que nos esperava.
Na cama dura do hotel, sob cobertores que não conseguiam vencer o frio úmido que subia do chão, o sono foi uma batalha perdida. Imagens fragmentadas rodopiavam: os números frios – 1.300.000; os rostos das fotografias dos livros, olhares fixos e assustados; o mapa mental de Birkenau com seus barracões infinitos; os trilhos brilhando sob uma lua inexistente; e sempre, sempre, a pergunta lancinante: O que verei amanhã? O que sentirei? Como sairei dali? O não-lugar já exercia seu poder, sugando a paz do presente, projetando seu horror adiantado. Cracóvia, com sua beleza melancólica e suas cicatrizes discretas, havia sido apenas o vestíbulo. O verdadeiro portal para o vácuo se abriria ao amanhecer, sob um céu de chumbo, no fim de uma linha férrea que não levava a lugar nenhum – apenas ao coração das trevas. A viagem ao centro do não-lugar começava ao raiar de um dia que prometia não ter fim.
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