domingo, 27 de julho de 2025

CAPÍTULO 3: KAZIMIERZ – O VÉU SOBRE O ABISMO

CAPÍTULO 3: KAZIMIERZ – O VÉU SOBRE O ABISMO

Kazimierz respirava história como um pulmão ferido. Hospedar-me na Rua Miodowa, no coração do antigo bairro judeu, não fora uma escolha casual, mas um mergulho deliberado nas camadas sedimentadas da memória. O hotel ocupava um prédio que testemunhara séculos – suas paredes grossas de pedra pareciam reter sussurros acumulados desde o século XIV, quando o bairro floresceu como um refúgio, uma cidade dentro da cidade, onde o iídiche ecoava nas vielas e a fé judaica moldava o ritmo dos dias. Antes de 1941, antes da ocupação alemã rasgar o tecido dessa coexistência complexa mas vital, Kazimierz pulsava. Agora, era um relicário de ausências. Da janela do meu quarto, avistava as torres imponentes da Sinagoga Tempel, a maior de Cracóvia, erguendo-se contra o céu plúmbeo de novembro como um monumento à resistência silenciosa. Sabia que, durante a guerra, os nazistas a haviam profanado com brutalidade calculada: transformada em estábulo para cavalos, depósito de munição. O peso dessa violação específica – o sagrado reduzido ao servil, o divino pisoteado pelo chão de cascos – era uma sombra que me acompanhou até o seu interior.


Entrar na Tempel, dias depois da chegada, foi uma experiência de violência contida. A grandiosidade do espaço, com suas galerias altas, seus vitrais desbotados pelo tempo e pela negligência, sua arca sagrada (Aron Kodesh) imponente ao fundo, contrastava brutalmente com o conhecimento do que ali ocorrera. Não eram fantasmas que habitavam aquele silêncio, mas o eco de um ultraje metafísico. Sentei-me num banco de madeira escura, gasto pelo uso e pelo tempo. O frio do assento penetrou as roupas. Olhei para os vitrais altos, por onde uma luz difusa e triste entrava. Cavalos. A palavra martelava na mente. Cavalos onde homens e mulheres oravam. Munição onde rolos da Torá eram venerados. A humilhação não era apenas física; era uma tentativa de assassinar o espírito, de negar o inefável, de cuspir na conexão mais íntima de um povo com o divino. Um sentimento denso, mais profundo que a tristeza – uma vergonha alheia, cósmica – pairou sobre mim. Ali, naquele banco, senti-me um intruso num luto que não era meu, mas que exigia testemunho. O silêncio da sinagoga não era paz; era o grito abafado da história.


O hotel era uma extensão dessa melancolia impregnada. O prédio, na Rua Miodowa, tinha a fachada marcada pelo tempo, a pedra escurecida pela fuligem de séculos e talvez pela fumaça de tragédias mais recentes. Uma grande Menorá de ferro, discretamente fixada acima da porta, era o único sinal explícito de sua herança. Internamente, era uma cápsula do tempo. Não uma reconstrução kitsch, mas uma preservação autêntica, quase acidental, que congelava um passado recente e doloroso. As portas rangiam em dobradiças antigas, pesadas, com fechaduras de metal maciço que pareciam exigir chaves perdidas no tempo. Os corredores estreitos, pavimentados com pequenos azulejos hexagonais em tons desbotados de verde, rosa água e azul-céu, conduziam a quartos minúsculos. O meu tinha uma cama de ferro pintada de branco já descascado, uma cômoda de madeira clara com puxadores de porcelana, e um lavatório de mármore rachado com torneiras de latão. As paredes, pintadas num amarelo-ocre gasto, abrigavam um silêncio espesso. Era acolhedor? Sim, de uma forma agridoce. Era o aconchego de um lugar que carregava o peso de ter sido lar, testemunha silenciosa de vidas interrompidas. Tocar na maçaneta fria, sentir o desnível do piso sob os pés, olhar para os azulejos desgastados ao redor da lareira (agora inerte) – tudo convidava a uma pergunta inevitável: Quem viveu aqui? Que histórias se desenrolaram nestas mesmas paredes antes que a noite de 1941 caísse sobre Kazimierz?


A primeira noite foi uma vigília involuntária. Deitado na cama estreita, envolto em cobertores que combatiam mal o frio úmido que subia do chão de pedra, os sons da noite transformavam-se em sinfonias de terror projetado. Um solavanco distante de porta? Imaginava a coronhada de um fuzil batendo contra a madeira. Vozes abafadas na rua? Tornavam-se gritos em alemão, ordens brutais. O ranger de uma janela ao vento? Era o choro sufocado de uma criança escondida. Os filmes, os documentários, as leituras obsessivas – tudo voltava com uma clareza cruel. Poderia ser eu. A ideia surgia, persistente e aterrorizante. Ou meus pais, meus avós, meus amigos. Qualquer um. Milhões. Sentia a invasão hipotética: a luz brusca de uma lanterna cortando a escuridão, o estalo das botas no corredor, a voz rouca exigindo que todos se levantassem, schnell!, jogados na noite gélida e sem estrelas, rumo ao gueto de Podgórze, do outro lado do rio, ou pior, diretamente para os trens. Era uma agonia mental, um filme de horror rodando sem controle. Só o olhar furtivo pela janela, buscando o mesmo céu antigo que cobrira tanto horror, trazia um frágil alívio. Um céu indiferente, impassível. Agradeço, pensava, a voz interior embargada, por não ter conheccer aquele inverno da alma.


Em noites subsequentes, o ritual repetia-se. Antes de tentar dormir, abria a janela. O ar cortante de novembro entrava como uma lâmina, avermelhando o rosto, petrificando os dedos que se agarravam ao parapeito de pedra gelada. Observava a rua Miodowa abaixo, quase deserta sob a luz amarelada e trêmula de poucos postes. Quem mais esteve aqui, neste exato ponto, encarando esta mesma escuridão? Tentava tocar a pedra, não com os dedos frios, mas com a imaginação, buscando captar o eco de desejos perdidos, de medos ancestrais, de orações silenciosas lançadas ao vazio. Que nome tinha? Que rosto? Que história foi interrompida antes mesmo de alcançar seu capítulo mais cruel? O frio era um convite à empatia física, uma ponte precária através das décadas. Se eu, protegido, aquecido (relativamente), com futuro garantido, tremia assim, como estariam eles? A pergunta era um abismo. Sem respostas, apenas o silêncio pesado da noite e o frio que se infiltrava até os ossos. Fechava a janela, o coração apertado, e no caderno de notas, sob a luz fraca do abajur, rabiscava palavras que mal capturavam o turbilhão:


“Cracóvia me engole. Da janela, Kazimierz se estende – um fóssil de vida. O tempo parou. Eu parei. A vida parece morta aqui, e a morte… a morte pulsa com uma vitalidade obscura. As pedras são testemunhas mudas de séculos sombrios. Tinta nova tenta cobrir, mas a escuridão sangra por baixo. As estrelas? São as mesmas. Iluminam, mas não iluminam. Tudo permanece intacto, imóvel. O lugar e o tempo são um só corpo congelado, respirando passado.”


O amanhecer trazia um frágil reset. O café da manhã, servido numa sala comum com mesas compridas e toalhas de linho branco, era um contraponto quase chocante à noite de sombras. Era farto, vibrante, vivo. Pratos de legumes frescos e crocantes – pepinos, rabanetes, tomates cereja rubros. Cogumelos salteados com endro, exalando um aroma terroso e fresco que era uma revelação para os sentidos, um sabor novo que associava imediatamente ao lugar, àquele momento único. Uma salada de batatas ainda quente, generosamente temperada com o mesmo endro, que se tornava uma erva-símbolo da Polônia em meu paladar. O cheiro do café preto forte e do chá de ervas fumegante criava uma névoa aconchegante. Sentado ali, sentia uma gratidão avassaladora, quase religiosa, pela abundância, pela luz que entrava pelas janelas altas, pelo conforto simples da cadeira de madeira, pelo abrigo que afastava a corrente gelada que entrava cada vez que a porta da rua se abria. Cada garfada era um ato consciente, quase ritualístico. Os sentidos, aguçados pela experiência imersiva, transformavam o ato de comer numa oração secular. Saboreava com respeito, agradecendo não a uma divindade específica, mas à frágil teia de sorte, história e circunstância que me permitia estar ali, seguro, alimentado, enquanto o destino que me aguardava naquele dia se desenhava a apenas sessenta quilômetros de distância. A trivialidade do mundo – dias da semana, horários, compromissos – dissolveu-se. Estava suspenso, totalmente presente e paradoxalmente ausente, tomado por uma missão que transcendia o turismo.


O transporte para Auschwitz chegou pontualmente, um micro-ônibus discreto. A saída de Cracóvia, atravessando a ponte sobre o Vístula, foi como cruzar um limiar. A cidade, com seu peso histórico, ficou para trás, dando lugar a uma paisagem rural polonesa que parecia saída de um livro infantil inocente. Casinhas encantadoras pontuavam a estrada, cada uma uma pequena obra-prima de simplicidade idílica: telhados de duas águas cobertos de telhas vermelhas ou de colmo, chaminés fumegando promessas de calor, janelinhas com cortinas de renda esvoaçantes, pequenas cercas brancas delineando jardins outonais, carros modestos estacionados com despretensão. Era o desenho universal de "casa", materializado repetidamente. Enquanto me perdia na doçura ingênua dessas cenas, uma sensação íntima e poderosa tomou conta: eu era uma testemunha. Meus olhos veriam. Meus pés pisariam. Essa consciência corporal, especialmente dos pés, tornou-se aguda.


Foi então que uma memória antiga, quase esquecida, irrompeu com força total: uma fixação infantil inexplicável por pés e sapatos. Quantas vezes, na infância, sentado em praças ou salas de espera, meus olhos desciam instintivamente para os calçados das pessoas ao redor? Por onde terão andado estes pés? era a pergunta silenciosa que me assaltava. Que terras pisaram? Que histórias carregam essas solas gastas? Era uma curiosidade mórbida e poética, um fascínio pela jornada física inscrita no corpo. Observava sapatos elegantes, botas enlameadas, chinelos desgastados, imaginando os caminhos invisíveis que haviam traçado. Agora, olhando pela janela do ônibus para aquelas casas perfeitas e os campos tranquilos, essa lembrança voltou com uma ressonância nova e perturbadora. Porque ali, naquele dia, meus próprios pés estavam prestes a pisar no solo mais carregado de história trágica que poderia conceber. Eles seriam, literalmente, testemunhas. O que sentiriam? Que eco guardariam?


Cerca de cinquenta minutos depois, a paisagem bucólica começou a mudar. Sutilmente no início, depois com uma clareza brutal. Primeiro, um muro baixo surgiu à direita da estrada. Depois, a cerca. Mas não uma cerca comum. Esta tinha arame farpado. E o detalhe que gelou o sangue: as lâminas do arame estavam voltadas para dentro. Não para impedir a entrada, mas para impedir, com ferocidade implacável, a saída. Era uma inversão perversa da lógica protetora. Um sinal inequívoco. Meus olhos seguiram a cerca, conduzidos por ela como por um fio maligno, até onde ela delineava um complexo de edifícios baixos, uniformes, construídos em tijolo marrom escuro, com fileiras regulares de janelas pequenas e altas, como olhos cegos. Blocos. A palavra ecoou na mente com o peso de um martelo. Árvores esqueléticas, testemunhas involuntárias, cercavam o perímetro. Ali estava. Auschwitz I. Minha frequência cardíaca disparou, um tambor frenético contra as costelas. A respiração tornou-se curta, ofegante, como se o ar tivesse sido sugado do ônibus. Uma onda complexa e avassaladora de sensações invadiu-me: um desconforto visceral, uma vergonha inexplicável (de pertencer à mesma espécie?), uma repulsa profunda e, acima de tudo, uma incredulidade paralisante. É real. A frase banal adquiriu um significado aterrador. Por mais que se saiba, se leia, se estude, se veja documentários, a materialidade física daquele lugar – sua escala, sua presença tangível no mundo real – permanece um desafio à compreensão humana. É um não-lugar que desafia a lógica do espaço que habitamos, um tumor concreto na paisagem da normalidade. É doloroso além da medida, marcante como uma cicatriz a ferro em brasa, profundamente atordoante.


Enquanto tentava, em vão, controlar a respiração, os blocos e a cerca interminável desfilavam pela janela. O micro-ônibus parecia mover-se em câmera lenta. Mesmo rodeado por outros passageiros – alguns sérios, outros conversando em voz baixa, um ou dois olhando distraidamente para os celulares –, senti-me completamente só. Uma solidão cósmica, petrificante. O vazio que o lugar emanava era palpável, uma entidade negra e ensurdecedora que suprimia qualquer pensamento que não fosse o terror puro, a pergunta sem resposta: Como? O tempo dilatou-se. Podia contar os segundos entre cada poste da cerca, cada janela repetitiva. Quando o ônibus dobrou uma esquina e mais fileiras de blocos e arame surgiram, levando até o portão de entrada, a sensação de irrealidade atingiu o ápice. Desci do veículo como um autômato, as pernas moles, a mente anestesiada pelo impacto. O solo sob meus pés – a brita áspera e cinzenta do estacionamento – trouxe-me de volta com um choque físico. Meus pés. Olhei para eles, para os sapatos que os protegiam. Lembrei-me da obsessão infantil. Agora, estes mesmos pés estavam aqui, neste não-lugar onde o tempo e o espaço se dissolviam. Uma necessidade irracional, quase mística, tomou conta de mim: pisar exatamente onde milhares de pés descalços, ensanguentados, desesperançados, haviam pisado antes de serem conduzidos ao abismo. Queria sentir o mesmo solo, seguir os mesmos passos, como um peregrino invertido marchando na procissão da morte. Era um desejo de conexão física com o sofrimento alheio, uma tentativa desesperada e talvez profana de compartilhar, por um instante, a geografia do inferno.


Essa necessidade trouxe consigo uma revolta surda, uma frustração imensa. A impotência era esmagadora. Sentia-me atrasado. Tão atrasado. Chegava décadas depois do grito final, quando apenas o silêncio e os artefatos do horror permaneciam. Não podia salvar ninguém. Não podia impedir nada. Tudo o que me restava era ver, tocar, sentir e… testemunhar. Registrar. Relatar. Ser um canal frágil para que a memória não se apagasse, para que outros não-lugares assim não brotassem no futuro. Era uma sensação estranha: derrota e responsabilidade entrelaçadas, vergonha e um propósito engrandecedor. Sabia que, mesmo passadas tantas décadas, o ódio, a inconsequência, a ambição desmedida e o egoísmo assassino que alimentaram Auschwitz continuavam a replicar-se pelo mundo, gerando novos não-lugares, novas valas comuns. Aqueles pés pisando na brita fria eram um compromisso solene: Ver. Lembrar. Contar.


A entrada do campo se impunha. Torres de vigilância de madeira, esguias e ameaçadoras, pontuavam a cerca a cada quinhentos metros. Olhei para uma delas, imaginando um soldado fantasmagórico observando-nos, o cano de um rifle apontado inutilmente para um grupo de turistas do século XXI. Um calafrio percorreu-me, forçando-me a desviar o olhar, a voltar ao presente fugidio. Foi conduzido pelo grupo, num silêncio agora mais pesado, até o ponto inevitável: o infame portão de ferro forjado. E lá estava ela, pendurada com uma solenidade cínica: a inscrição “ARBEIT MACHT FREI” – O trabalho liberta. O ápice da perversão nazista, uma promessa de esperança esculpida no portal do desespero absoluto. Parei. Encarei-a. Não como uma relíquia histórica, mas como um espelho distorcido da condição humana. Para os que passaram por ali, olhando talvez para as chaminés ao fundo, sabendo ou intuindo o fim, aquelas palavras deveriam soar como o riso final do carrasco. Mas seu poder perverso residia justamente em sua falsidade serena, em como ela ainda nos interrogava. Revelava a fragilidade de nosso próprio conceito de liberdade. Quão poucos, verdadeiramente livres, compreendem e honram o privilégio monstruoso de seu livre-arbítrio? Quantos o desperdiçam na indiferença, no ódio pequeno, na conivência silenciosa?


Antes de cruzar o limiar, um súbito movimento capturou minha atenção. O vento, que até então sussurrara, levantou-se com força, sacudindo as árvores ressequidas nas margens do campo. Galhos ossudos chacoalharam contra o céu baixo, como braços suplicantes. Olhei para os tijolos marrons dos blocos, uma cor terrosa e morta que destoava brutalmente da paisagem outonal. Aqueles tijolos, aquelas cercas de arame – eram os guardiões silenciosos da fronteira definitiva. A fronteira entre o lugar (por mais precário que fosse) e o não-lugar. Entre a vida suspensa e a morte industrializada. Entre a escuridão da alma do carrasco e a luz extinta da vítima. Entre o presente fugaz do visitante e o passado eterno do prisioneiro.


Cruzar aquele portal era renunciar à inocência, por mais ilusória que fosse. Era compactuar, como testemunha tardia, com o relato do abismo. Era confrontar a pergunta mais aterrorizante: Até onde pode chegar o ser humano? Era assustador constatar o esforço colossal, a engenhosidade pervertida, os recursos imensos dedicados a erguer aquele colosso da morte numa época de escassez, num local remoto. Tudo para servir a uma ideologia de ódio e pureza delirante. Passar sob o portão era diminuir-se. Diminuir-se pela cumplicidade passiva da humanidade que permitiu Auschwitz. Diminuir-se pela violência desumanizante perpetrada contra médicos, artistas, crianças, comerciantes, professores – uma constelação de talentos e vidas comuns arrancadas brutalmente de seu curso, amontoadas em trens, reduzidas a números e, finalmente, a fumaça. O genocídio igualou vítimas e algozes na desumanização: roubou a humanidade dos que sofreram e perverteu a humanidade dos que perpetraram. Ambos os lados foram tragados pelo mesmo vazio moral.


O campo de Auschwitz I, dentro dos muros, confirmou a sensação do portal. Era uma cidade da morte, meticulosamente planejada. Os blocos, alinhados com precisão militar, não eram ruínas. Eram estruturas sólidas, assustadoramente intactas, cada tijolo um testemunho mudo. Primo Levi, sobrevivente, escreveu sobre a queda abaixo do "não-existente" dentro do campo, sobre o poder absoluto dos "sátrapas" de baixa patente. Ali, naquele espaço, a morte tornara-se rotina, burocracia, indústria. Oito mil vidas apagadas por dia, no auge. A arquitetura do lugar, a organização espacial, tudo falava de uma mente insana, sim, mas também de uma eficiência burocrática aterradora voltada para um único fim.


Cada passo dentro de Auschwitz era um mergulho mais profundo. Os degraus de pedra gastos que levavam aos blocos pareciam absorver os gritos silenciosos de quem os subira antes. Cada janela alta era um quadro para um filme de horror diferente, projetado na mente. Dentro dos blocos transformados em museu, o horror adquiria uma materialidade insuportável. A Sala das Próteses: montanhas de membros mecânicos, pernas de pau, muletas, aparelhos ortopédicos – a evidência crua de que até os corpos já limitados pela deficiência foram marcados para aniquilação como "vida indigna de vida". A Sala das Panelas: milhares de panelas, frigideiras, bule amassados. Cada uma representava uma família, um lar, um ritual doméstico de sobrevivência interrompido. A promessa mentirosa de "reassentamento" ecoava na patética esperança de quem trouxera seus utensílios. A Sala das Malas: pilhas incontáveis, muitas com nomes, datas de nascimento e endereços pintados a tinta branca – "Hanna Goldberg, 12-3-1928", "David Cohen, bebê, 1942" –, a última âncora de identidade arrancada e catalogada com frieza burocrática. A Montanha de Sapatos: dezenas de milhares, formando uma paisagem deformada de couro, tecido e borracha. Sapatos elegantes de senhora, botas de trabalho, sandálias, e, no meio, os que cortavam a respiração – sapatos infantis minúsculos, com laços ou fivelas, testemunhas da inocência assassinada.


E, finalmente, os corredores de rostos. Fileiras intermináveis de fotografias de prisioneiros, tiradas na entrada. Não eram retratos; eram documentos de despojo. Os semblantes, sob os uniformes listrados, eram um catálogo do esvaziamento humano. Olhos que nos encaravam das paredes não transmitiam raiva, nem medo, nem esperança. Transmitiam um vazio. Um distanciamento absoluto. A pessoa já não estava mais ali. A alma fora extinta antes mesmo do corpo. Era o olhar do ser reduzido a coisa, ao Stück (peça), como os nazistas os designavam. Esse vazio era mais eloquente que qualquer grito. Era o silêncio mais ensurdecedor. Não era necessário falar. O silêncio era o grito. Olhar para aqueles rostos, para aqueles olhos sem luz, era ser invadido por uma vergonha avassaladora de pertencer à mesma espécie. Era sentir o peso esmagador da pergunta: O que eu teria feito? Teria tido coragem de ajudar? De esconder? De resistir? E a pergunta mais urgente, projetada daquelas paredes para o nosso presente: Podemos, agora, fazer diferente? Podemos reconhecer os germes do ódio, da desumanização, da indiferença, e combatê-los antes que gerem novos Auschwitz?


Aqueles rostos, na sua multidão silenciosa e vazia, não pediam lágrimas. Pediam ação. Pediam vigilância. Pediam que a memória do não-lugar não fosse um museu, mas um farol aceso contra a escuridão que sempre espreita. Cada passo dentro daquele bloco, diante daquela montanha de pertences roubados, diante daqueles olhos sem vida, era um compromisso renovado: Lembrar. Não esquecer. Agir. O verdadeiro horror de Auschwitz não estava apenas no passado. Estava no desafio que ele lançava, eternamente, ao futuro da humanidade. E ali, com os pés frios apoiados no mesmo solo de brita que absorvera tanto desespero, eu aceitava, trêmulo, o peso desse desafio. A jornada pelo não-lugar apenas começara, e ela já mudara tudo.

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