domingo, 27 de julho de 2025

CAPÍTULO 4: A GEOMETRIA DO INFERNO – BUROCRACIA, ARAME E O SILÊNCIO QUE GRITA

CAPÍTULO 4: A GEOMETRIA DO INFERNO – BUROCRACIA, ARAME E O SILÊNCIO QUE GRITA

O Bloco 11 respirava uma quietude subterrânea que doía nos ouvidos. Não era o silêncio da paz, mas o vácuo pós-grito. Meus passos ecoavam nos corredores baixos, abafados pela espessura das paredes de concreto que pareciam suar história condensada. O ar era denso, impregnado do pó de décadas e de algo mais intangível: o terror meticuloso que ali se instalara. As lâmpadas fracas lançavam poças de luz amarelada sobre as paredes nuas, revelando não a textura da pedra, mas sua memória violenta: buracos de bala. Irregulares, profundos, como crateras lunares num mundo privado de luz. Estendia a mão, tocava o reboco áspero em torno de uma dessas marcas. A friagem mineral subiu pelo braço. "Aqui", sussurrou o guia, sua voz um fio de som no silêncio opressivo, "fuzilaram Franzischka Lang. Mãe de três. O crime? Um pedaço de pão contrabandeado para o filho doente." O tempo não fluía naquele lugar; coagulara, como sangue seco sob o sol implacável da indiferença.


Foi entre essas paredes que Josef Mengele, o Todesengel – o Anjo da Morte –, teceu suas experiências com o fio negro da perversidade. Imaginar a cena era como ser arrastado para um pesadelo acordado: crianças nuas, corpos frágeis marcados não com nomes, mas com números frios, observadas não por olhos humanos, mas por lupas clínicas que viam apenas material biológico, espécimes, Stücke – peças. A genialidade científica, esse farol da razão humana, torcida para servir à desumanização mais absoluta. Como um médico, a pergunta martelava meu crânio, pode esquecer o juramento de Hipócrates e abraçar o de Tânatos? A resposta, intuía com um frio na espinha, jazia não na monstruosidade isolada, mas na engrenagem perfeita que vira documentada em outro bloco: pilhas imensas de fichas catalogadas, listas meticulosas, registros burocráticos que transformavam o extermínio em rotina administrativa. Era Kafka elevado ao paroxismo do horror: o labirinto burocrático não aprisionava apenas o homem; negava-lhe até o direito de ser humano antes de aniquilá-lo.


Auschwitz foi a catedral da eficiência assassina. Tudo ali obedecia a uma lógica perversa de padronização, catalogação, matematização do mal. Os triângulos de cores nos uniformes listrados – vermelho sangue para os políticos, rosa pálido para os homossexuais, verde musgo para os criminosos comuns, negro como breu para os "associais" – eram hieróglifos de uma sociedade que categorizava a vida antes de descartá-la. Os números tatuados nos antebraços, indeléveis como estigmas, eram selos de gado humano, reduzindo biografias complexas a dígitos numa planilha. As seleções na Judenrampe de Birkenau, executadas com frieza cirúrgica sob o céu aberto: um gesto de baioneta ou dedo enluvado decidindo em segundos quem teria uma morte rápida nas câmaras e quem seria condenado à agonia lenta do trabalho escravo e da fome. Hannah Arendt e Franz Kafka – almas judias que haviam dissecado as engrenagens sufocantes do poder e da burocracia – teriam reconhecido ali o ápice monstruoso de suas premonições literárias. O genocídio não fora obra exclusiva de demônios histéricos, mas de funcionários de óculos e gravata, cumprindo metas, preenchendo formulários, garantindo a "produtividade" da morte. Eichmann, em Jerusalém, resumira com uma banalidade aterradora: "Eu apenas seguia ordens." O horror supremo residia precisamente nessa normalização do inominável. Paradoxalmente, essa mesma obsessão burocrática hoje nos permite resgatar fragmentos de humanidade – o número B-4862 pertencente a Chava Rosen, encontrado em listas de transporte para Monowitz, transforma-se de mero dígito em farol de uma vida interrompida.


Ao me aproximar das cercas de arame farpado que cercavam Birkenau, uma revelação física, brutal, atingiu-me como um soco: as lâminas cortantes estavam voltadas para dentro. Não era apenas uma barreira física; era uma declaração filosófica, uma metáfora açoitada pelo vento gélido. Enquanto meus dedos tremiam a centímetros dos espirais mortais, visualizei os milhares de dedos que ali se agarraram antes de mim – dedos de mães tentando proteger filhos do frio, dedos ossudos de idosos cujas articulações rangiam de dor e fome, dedos jovens que ainda guardavam a memória do toque carinhoso. A cerca era a linha de fronteira definitiva, o divisor de águas ontológico. Do lado de cá, o mundo persistia com sua insolente beleza: o voo livre dos pássaros, a textura das nuvens no céu cinza, o perfume distante da terra molhada – a liberdade transformada em tortura sublime. Do lado de lá, o não-mundo, o vácuo onde até o desejo mais básico de respirar, de existir, tornava-se uma culpa a ser expiada com sofrimento. Quantos corpos se lançaram contra essas lâminas como último ato desesperado de autonomia? Quantos sucumbiram eletrocutados, seus corpos contorcidos permanecendo como avisos macabros para os demais? As cercas persistem no mundo – serpentes de aço enrolando-se em Gaza, erguendo-se nas fronteiras da Europa, segregando comunidades – lembrando-nos, com um grito mudo, que Auschwitz não foi um acidente histórico, mas um protótipo funcional da desumanização.


O crematório II de Birkenau erguia-se diante de mim como uma catedral gótica dedicada a um anticristo industrial. Ao cruzar seu limiar, um frio diferente envolveu-me – não o frio climático de novembro na Polônia, mas um frio ontológico, um arrepio que nascia do vazio deixado por milhões de almas volatilizadas. O silêncio ali não era ausência; era uma presença espessa, pesada, saturada de ecos abafados, de suspiros interrompidos, do ruído fantasma de vidas convertidas em fumaça. Na vasta sala subterrânea disfarçada de "sala de desinfecção", ranhuras no teto de concreto ainda marcavam os pontos por onde o Zyklon B – o pesticida transformado em arma genocida – era despejado sobre corpos amontoados na ilusão de um banho purificador. Os fornos, desmontados às pressas pelos algozes em fuga, deixavam apenas bases de concreto como lápides de uma indústria infernal. A genialidade macabra do sistema revelava-se em sua economia sinistra: um corpo adulto rendia cerca de 200g de cinzas úteis como fertilizante barato; as crianças, mais frágeis, eram queimadas em lotes para poupar combustível. Os cabelos, cortados post-mortem, eram embalados para se tornarem feltro ou cordas. O ouro arrancado de dentes fundia-se em lingotes para as reservas do Reich. Até a morte era burocratizada: certificados falsos atestando "causas naturais" eram emitidos para acalmar suspeitas distantes. Ali, ocorreu a derradeira alquimia: a transmutação de seres amados – pais que embalaram filhos em noites insones, noivas que teceram sonhos com linhas douradas, avós que carregavam histórias de séculos – em colunas anônimas de fumaça negra ascendendo para um céu indiferente. E os Sonderkommandos, prisioneiros condenados a operar a máquina de morte em troca de alguns meses de sobrevida, testemunharam o derradeiro, indizível adeus: corpos entrelaçados como raízes arrancadas da terra da vida, mães apertando bebês inertes contra o peito mesmo na agonia final da asfixia, um amor persistindo para além do último suspiro.


De volta a Auschwitz I, o Bloco 4 guardava o testemunho mais visceral, mais esmagador: a montanha de sapatos. Quarenta mil pares – talvez mais – amontoados atrás de uma barreira de vidro, uma paisagem deformada de couro, tecido, borracha e metal em decomposição lenta. Botinas de operário com solas remendadas inúmeras vezes, testemunhas de jornadas de trabalho longas antes do horror final. Saltos elegantes de seda que talvez tenham dançado em casamentos ou festas. Sandálias infantis minúsculas, algumas com fivelas em forma de flor ou estrela, inocência assassinada antes de florescer. O cheiro era um invasor violento: couro envelhecido, mofo profundo, suor seco de décadas, e algo mais, algo inapreensível e profundamente humano – o odor-fantasma dos pés que um dia aqueceram e moveram esses calçados, o rastro físico de vidas que caminharam, correram, dançaram, trabalharam, antes de serem conduzidas ao abismo.


Diante daquela vitrine do despojo, uma epifania irrompeu com a força de um raio: cada gesto banal, cada objeto corriqueiro da minha existência cotidiana era um milagre não reconhecido, uma dádiva inaudita. A torrada matinal, crocante e dourada sob a geleia – enquanto ali, migalhas roubadas valiam golpes de cassetete ou morte. O edredom aquecido envolvendo o corpo em sono seguro – enquanto ali, corpos esqueléticos tremiam em beliches de madeira infestados de piolhos e doenças, três ou quatro por cama, o calor humano uma ironia cruel. O banho quente, o jorro reconfortante sobre a pele – enquanto ali, a neve derretida era um luxo disputado, a sujeira uma segunda pele. O simples ato de escolher o que vestir, o que comer, para onde ir – um privilégio inimaginável naquele universo onde a escolha mais básica fora abolida.


"Auschwitz é um espelho quebrado", escrevi depois, com letra trêmula no caderno, minhas costas encostadas na parede fria do corredor. "Cada fragmento cortante reflete uma pergunta lancinante: Quando foi a última vez que agradeci genuinamente por uma colher limpa? Por uma tomada que, ao ser conectada, acende luz e não medo? Por deitar-me à noite sem o terror de botas invadindo meu quarto? O horror não está apenas no que foi feito; está na revelação brutal do valor infinito do ordinário que desperdiçamos no automático da existência."


No corredor adjacente, as fotografias dos prisioneiros alinhavam-se como um mosaico monumental da desesperança. Não eram retratos; eram documentos de despojo, fichas policiais do genocídio. Rosa Zalmanowicz, 23 anos, tatuagem A-14232 visível sob a manga arregaçada do uniforme listrado. Seus olhos enormes não fitavam a câmera; fitavam um vazio atrás do fotógrafo, um abismo onde a centelha humana já se apagara. David Cohen, 60 anos, barba por fazer, o colarinho do uniforme deformado e sujo, sua pupila sem foco, dissolvida numa névoa de terror e resignação. Seus olhares não acusavam, não suplicavam. Eram apenas vazios – o vazio terminal de quem atravessara o limiar onde a própria humanidade se dissolve, onde o eu se esvai antes mesmo da morte física. Eram o produto final, o retrato acabado da burocracia do mal: seres humanos reduzidos a Stücke (peças), números em um sistema de descarte eficiente. Hannah Arendt vira a verdade insuportável: o maior perigo não reside na monstruosidade espetacular, mas na sua banalização, na sua transformação em rotina administrativa, em "solução" técnica para um "problema" inventado pelo ódio.


De volta a Cracóvia, Kazimierz envolvia-se num manto de neblina vespertina que sugava as cores do mundo. Mesmo o vermelho vibrante dos bondes, o dourado das letras iídiche nos cafés restaurados, o verde teimoso de alguma planta resistente – tudo se dissolvia em tons de sépia, de cinza, na retina da memória. Por que recordava tudo em preto e branco? Talvez porque o trauma profundo seja uma emulsão química que corrói as cores da realidade, deixando apenas o contraste brutal entre a luz e a sombra, a existência e o nada, a memória e o esquecimento. Diante da imponente Sinagoga Tempel, agora restaurada com cuidado, uma placa discreta fixada na pedra contava a história mais violenta: *"ESTÁBULO NAZISTA, 1941-1945"*. A imagem invadiu-me com força brutal: soldados rindo, fumando, amarrando cavalos suados e nervosos onde outrora o Rolo da Torá, envolto em veludo e temor, repousara no Aron Kodesh. A profanação não poderia ser mais completa: trocar o sopro divino das Escrituras pelo bufido animal, o sagrado pelo servil, o eterno pelo efêmero e sujo. Ali, naquele instante de confronto com a pedra profanada, compreendi que o Holocausto não começara nas câmaras de gás de Birkenau. Começara aqui, quando um templo virou cocheira. Começara quando um nome foi substituído por um número. Começara quando a morte deixou de ser tragédia para se tornar logística, rotina, estatística.


Ao cruzar os trilhos abandonados perto da Praça Bohaterów do Gueto, folhas secas de outono cobriam os dormentes como um manto funerário natural. De repente, não vi, mas ouvi o que não estava mais lá: o rangido agônico de vagões de gado superlotados empurrados sobre os trilhos; o choro abafado e rouco escapando por frestas das tábuas; o apito longo e lúgubre da locomotiva, o último som ouvido por muitos antes da escuridão eterna. Um casal de turistas jovens passou rindo ao meu lado, absortos em suas selfies, suas roupas coloridas um contraste violento com a paisagem de dor sobre a qual pisavam. A vida seguia, insistente, sobre os dormentes da morte. A dissonância era um nó na garganta.


No cemitério judeu de Remuh, entre lápides antigas inclinadas como dentes cariados pelo tempo, a cena que me paralisou: um homem curvado pelo peso dos anos e de uma história impensável, um chapéu preto cobrindo cabelos de neve, cercado por um grupo de jovens israelenses. Seus olhos – dois poços profundos, escuros, onde ainda habitavam sombras de Auschwitz – não viam apenas o grupo; fitavam algo distante, um horizonte interno povoado de fantasmas. Quando uma jovem de tranças loiras se aproximou e lhe entregou uma rosa branca, ele a aceitou com mãos trêmulas. Seus lábios moveram-se, e um sussurro rouco, em iídiche, chegou até mim carregado pelo vento frio: "Es hot zich nit gedarft trefn." – Isso não deveria ter acontecido. Naquele instante, minha reflexão sobre o papel único das mulheres na geografia do sofrimento ganhou forma concreta. Enquanto líderes homens, em gabinetes distantes, assinavam tratados de não-agressão ou moviam exércitos em mapas de estratégia, eram elas que, nas trincheiras da sobrevivência íntima:


Entrelaçavam corpos em vagões escuros para conservar um fio de calor humano.


Amamentavam bebês em silêncio absoluto, sufocando o próprio choro para não atrair a atenção dos cães ou guardas.


Dobravam cartas de despedida em códigos secretos, escondendo-as em dobras de roupas ou fendas de barracões, mensagens lançadas ao mar do desespero na esperança de alcançar uma costa de humanidade.

Sim, a mulher foi a grande arquiteta da sobrevivência íntima no tempo do horror absoluto. Como dissera uma sobrevivente, sua voz quebrada ecoando no documentário Shoah: "Os homens... os homens morriam primeiro. Nós, mulheres, éramos treinadas para suportar a dor desde a primeira menstruação. Aprendemos a resistir no silêncio, no cuidado, no instinto de preservar a vida, mesmo quando a vida era inferno."


Na praça principal de Kazimierz, diante do edifício que abrigara o escritório de Oskar Schindler – um farol de humanidade num mar de trevas – a pergunta inevitável ressurgiu com força: Como o jovem padre Karol Wojtyła, futuro Papa João Paulo II, viu tudo isso se desenrolar nas ruas de sua Cracóvia? A Igreja, essa coluna milenar, calara-se quando seu grito era necessário, falhara quando sua ação era crucial. A lição era clara e amarga: instituições falham, hierarquias se corrompem, dogmas podem cegar. Só a consciência individual, a centelha moral inalienável dentro de cada pessoa, pode resistir à maré do mal quando ela se levanta. A responsabilidade última é sempre nossa.


Ao final do dia, refugiei-me no Café Ariel, na Rua Szeroka. O aroma de café forte e bolo de maçã tentava, em vão, afastar o frio que vinha de dentro. Escrevi, então, não apenas palavras, mas um testamento de consciência:


"Auschwitz não é um desvio na estrada da civilização. É o ponto culminante de uma equação mortal escrita com o sangue da história: burocracia desumanizada + ódio tribal alimentado + silêncio social cúmplice. Seu legado não é a culpa paralizante que herdamos, mas a responsabilidade ativa que nos cabe. Cada vez que calamos um discurso de ódio que brota como erva daninha, cada vez que questionamos uma ordem que fere nossa humanidade comum, cada vez que ensinamos uma criança a ver no 'Outro' não uma ameaça, mas um espelho de si mesma – estamos desmontando, tijolo por tijolo invisível, os alicerces de um futuro campo de extermínio.


O antídoto está na educação do ego – esse vulcão de desejos e medos. Ensinar que desejo não é destino. Que diferença não é deficiência ou ameaça, mas a riqueza da tapeçaria humana. Que humanidade não é um clube exclusivo, mas uma pátria sem fronteiras onde todos nascem sócios plenos. Como ensina o Talmud: 'Quem salva uma vida, salva o universo inteiro'. Mas acrescento: quem salva a memória, quem a mantém viva, vibrante, interrogante, não como múmia do passado, mas como farol do presente – esse salva o futuro."


Ao sair do café, a lua prateada derramava sua luz fria sobre Kazimierz, iluminando não ruas, mas lápides estendidas. Os sapatos do Bloco 4 ainda pesavam em minha alma, uma carga imensa. Mas agora compreendia: carregar esse peso não era castigo; era o preço da lucidez. O não-lugar de Auschwitz, com sua geometria infernal de blocos, cercas e silêncios gritantes, exigia mais que lágrimas. Exigia que transformássemos sua lição de sangue e cinzas numa bússola moral infalível – para que em nenhum lugar, nunca mais, o arame farpado consiga separar um ser humano da sua humanidade inalienável. A sombra de Birkenau era longa, mas a luz da memória vigilante poderia, enfim, iluminar o caminho adiante.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial