segunda-feira, 28 de julho de 2025

Capítulo V: O Eco nos Trilhos de Dachau


O trem cortava a Baviera, paisagens postais que desfilavam pela janela: colinas verdejantes, casinhas com telhados de ardósia, bosques que pareciam saídos de um conto dos irmãos Grimm. Dachau. O nome soava quase bucólico, dissonante do peso que carregava. A cidade, ao desembarcar, confirmava a primeira impressão. Era bonita, ordenada, florida. Uma normalidade que doía. Como podia tanta graça conviver, mesmo que velada pelo tempo e pela distância, com o abismo? A proximidade era a primeira facada. Não era um lugar remoto, perdido em ermos inóspitos; estava ali, respirava o mesmo ar da cidade, compartilhava o mesmo céu. Uma vizinhança silenciosa e monstruosa. O campo não gritava; sussurrava sua presença com uma discrição que era, em si, outra forma de violência.


Já conhecera a geografia do horror em Auschwitz. A mente cria certas antecipações, certas couraças. Mas Dachau golpeia por outras vias. O primeiro impacto veio antes mesmo do portão. Os trilhos. Eles estavam lá, inertes, enferrujados, mas indeléveis. Não eram apenas linhas de ferro; eram veias por onde fluiu o sangue gélido da máquina da morte. Seguiam-nos, convidando, ou antes, arrastando o visitante em direção ao coração das trevas. Eles entravam no campo, trespassando um muro, sumindo na boca sombria de um portal. Aquele portal. Arbeit Macht Frei. O trabalho liberta. A mentira cínica forjada em ferro, pendurada como um troféu macabro sobre a entrada. Toquei as correntes pesadas, o metal gelado queimando os dedos num dia já frio e cinzento. Era como tocar a própria corrente da História, áspera e implacável. O ar era uma lâmina úmida, o céu uma lousa baixa. Um vazio imenso, povoado apenas pelo esqueleto do que fora.


Caminhei. O chão era de cascalho, o som dos passos ecoava solitário. Onde outrora se amontoara a desesperança humana, agora havia espaço. Demasiado espaço. Fileiras fantasmas marcavam o solo – não covas, mas os fundamentos dos barracões. Olhando de longe, pareciam sepulturas coletivas, uma necrópole geométrica e obscena. Ao aproximar-se, a verdade era mais crua: eram as raízes de prisões de madeira e desespero, onde a vida foi metodicamente esgotada até o último suspiro. Fotografias em preto e branco, rostos esvaídos pelo tempo e pelo terror, fitavam o vazio com olhos que pareciam atravessar décadas e encontrar os meus. Semelhante a Auschwitz? Sim, na essência do mal. Mas diferente. Mais antigo. O memorial na entrada ostentava duas datas: 1933-1945. Doze anos. Uma era. O tempo de gestação e operação de um pesadelo.


Foi então que vi as flores. Frescas, vibrantes num ambiente de morte fossilizada. Uma coroa, e sobre ela, a bandeira italiana. Verde, branco, vermelho. Um soco no estômago. Minha origem, minha sangue, pulsando ali, naquele solo maldito. Lembrei-me do meu avô. Lá estava ele, no Brasil distante, durante aqueles anos infernais. Salvo pela geografia, pela sorte, pelo oceano. Mas quantos outros Loras, quantos outros italianos, não tiveram o mesmo destino? A história, que tantas vezes parece uma narrativa distante, encadernada em livros poeirentos, tornou-se visceral. Era sangue do meu sangue, suor da minha linhagem, que podia ter regado aquele solo ácido. O que fizeram os meus, naqueles anos? Para onde olhavam? O que sabiam? O que calaram? A pergunta martelava, insidiosa, misturando culpa, alívio retrospetivo e uma angústia profunda. Não eram judeus, mas eram humanos, e a sombra da guerra cobria todos. Aquele lugar era um espelho quebrado refletindo fragmentos de uma história familiar que eu mal conhecia.


E foi num desses fragmentos que tropecei. Literalmente. Ou talvez não fosse acaso. Talvez fosse o poder silencioso da memória, uma intuição ancestral puxando-me. Num painel, numa lista, um nome saltou dos demais, gravado a fogo na minha retina: LORA. Giovanni Lora. O sobrenome, incomum, mesmo na Itália, mais ainda no Brasil. Um raio de certeza. Montecchio Maggiore. A mesma terra dos meus avós, o mesmo pedaço de Vêneto que ecoava nas histórias de infância. As datas batiam. Não havia dúvida. Era sangue. Primo do meu avô. Um homem, um rosto, uma história que se perdera nas dobras do tempo e da tragédia, ressurgia ali, em Dachau, para me confrontar. A visita, até então uma peregrinação dolorosa mas impessoal, transmutou-se. Giovanni Lora deixou de ser uma estatística, um nome numa lista de vítimas. Tornou-se familiar. Um fantasma com quem compartilhava genes, talvez o formato do queixo, o tom da voz. A conexão era um fio elétrico, doloroso e intenso. Sentia-me chamado. Por ele? Pela memória? Pelo peso de uma dívida histórica que, de repente, tinha um rosto e um nome? Era como se ele, sepultado naquela infâmia, tivesse esperado décadas por alguém da sua estirpe para dizer: "Estive aqui. Sofri aqui. Não me esqueças."


Foi nesse estado, vulnerável, com o coração exposto e a mente invadida por Giovanni, que entrei no crematório. Auschwitz era monumental em sua crueldade industrial. Dachau era mais cru, mais íntimo na sua eficiência assassina. Mais simples, disseram. Simples como uma engrenagem bem oleada do inferno. As paredes baixas, o forno ali, nu, obsceno em sua funcionalidade terrível. Não era ruína; parecia intacto, apenas adormecido, à espera. Cada etapa do processo de desmonte humano estava clara: a sala de espera disfarçada, o local do despojamento final, a porta para o nada. O ar parado cheirava a velha fuligem, a cinzas nunca completamente dissipadas. E então, veio. Não um cheiro físico, mas uma memória olfativa lancinante, uma alucinação visceral: o cheiro do ferro do sangue, denso, metálico, sufocante. Uma onda de náusea subiu, incontrolável. O ar faltou. As pernas fraquejaram. Um peso imenso, físico e espiritual, esmagou-me. Em Auschwitz, fiquei atordoado. Em Dachau, no crematório, com o fantasma de Giovanni sussurrando na minha nuca, fui contaminado. O horror não era mais conceito; era uma entidade viva que se instalava nas minhas entranhas. Foi o momento mais brutal, o mais visceralmente insuportável de todos. Ali, a máquina da morte tocara-me, e a ferida era profunda.


Saí cambaleando, buscando ar puro que não existia. O bosque próximo, silencioso, belo, era uma armadilha. Placas discretas: "Aqui foram executados...", "Neste local...". Marcas de tiros no reboco de um velho muro. Crucifixos erguidos em memória, testemunhas mudas de uma dor que transcende a fé. Cada passo naquele chão era um sacrilégio. Caminhava, caminhava, o corpo cansava, o frio cortava, o vento uivava nas árvores como um coro de lamentos antigos. A vastidão do campo, a distância até os limites, era um suplício físico apenas para percorrê-lo como turista do horror, num único dia. E então, o pensamento, inevitável, arrasador: Imagine. Imagine quem aqui esteve não por uma hora, ou um dia, mas por anos. Anos de fome que devora a alma, de frio que congela a esperança, de terror que quebra a mente. Anos sob o chicote da arbitrariedade, da humilhação sistemática, da morte como vizinha cotidiana. Como se sai dali? Como se sobrevive, não apenas ao corpo, mas à própria humanidade? A mente, essa frágil luz, como resiste a uma escuridão tão absoluta, tão prolongada?


Uma última imagem perseguiu-me, fixada numa fotografia: um homem. Não um esqueleto, mas um homem reduzido ao seu limite último de existência. Sentado no chão de terra, os ossos tentando rasgar a pele amarelada. Olhos fechados, talvez contra a luz, talvez contra a visão do próprio inferno. Boca aberta, não num grito, mas num suspiro infinito, um último e mudo apelo, ou simplesmente o vácuo da extinção iminente. O semblante era uma paisagem da desolação absoluta. Ao lado, celas de castigo, estreitas, escuras, intactas como cápsulas do tempo do tormento. Era assustador. Não pelo sobrenatural, mas pelo excesso de realidade, pela prova tangível daquilo que humanos são capazes de infligir a outros humanos.


Deixei Dachau carregando Giovanni Lora. Não apenas o nome, mas o peso da sua ausência, da sua dor não presenciada, mas agora sentida. Os trilhos que entraram no campo eram agora os trilhos que saíam de mim, levando uma carga indelével. A cidade bonita lá fora parecia um cenário frágil, uma ilusão. O verdadeiro Dachau, o campo, o crematório, o bosque das cinzas, o olhar daquele homem sentado, havia se instalado dentro de mim. Era mais do que uma visita; era um enterro. O enterro da minha inocência sobre a profundidade do mal, e o desenterro de uma memória familiar escrita em cinzas. Alguém me chamara através dos anos. E eu respondera. Trouxe o eco. E o eco nunca mais se calaria. Como sai a mente dessa pessoa? A pergunta, lancinante, não era mais sobre os prisioneiros. Era sobre mim. Como sairia eu dali, com a mente intacta, depois de ter caminhado, mesmo que por horas, nos mesmos passos da desesperança? Os trilhos seguiam, desaparecendo na névoa. Mas dentro, o caminho apenas começava.

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