segunda-feira, 28 de julho de 2025

Capítulo 6: A Geografia do Vazio em Bełżec


O trem atravessava a planície polonesa, uma tapeçaria verde e dourada sob um céu de outono lavado, quase límpido demais para o destino. Campos ondulantes, bosques que pareciam respirarem tranquilidade, vilarejos com casas de madeira colorida como brinquedos espalhados pela paisagem. Bełżec. O nome sussurrava na placa da estação, um nome que, para a maioria, não ecoava nada. Não tinha a infâmia estridente de Auschwitz, nem a primazia sombria de Treblinka. Era apenas um ponto próximo à fronteira com a Ucrânia, um lugar onde a terra, aparentemente, continuava sua vida pacata, ignorante. Essa normalidade, porém, era a primeira camada de um véu perturbador. Porque ali, enterrado não apenas no tempo mas quase fisicamente apagado da superfície, jazia um dos centros neurais da Operação Reinhard – a engrenagem mais eficiente e monstruosa do extermínio metódico, a máquina concebida para reduzir seres humanos a números e depois a cinzas, com uma velocidade industrial que desafiava a própria capacidade de compreensão do mal. Um milhão e setecentas mil almas. A cifra pairava no ar úmido, um peso matemático insustentável.


Chegar a Bełżec é um ato de fé na memória, pois o campo, ao contrário de outros, foi sistematicamente desmantelado, obliterado, apagado. Os perpetradores não queriam testemunhas, nem mesmo as de pedra e madeira. Não há torres de vigia fantasmagóricas, não há esqueletos de barracões delineados no chão, não há portões cínicos. Há um silêncio. Um vazio físico quase absoluto, preenchido apenas pelo vento sibilando nos pinheiros e pelo ocasional ruído distante de um veículo na estrada. Esse vazio, essa ausência gritante, é a primeira violência. É como chegar ao local de um crime onde o corpo foi não só removido, mas dissolvido, e onde apenas uma mancha indescritível permanece. O impacto, então, não vem do choque do que se vê, mas do agudo desconforto do que não se vê, do que foi tão completamente aniquilado que desafia a própria materialidade da tragédia. Um museu discreto, moderno, ergue-se como um portal para essa ausência. Mas ele não é o campo; ele é apenas o vestíbulo, o lugar onde os números começam a se desprender das páginas dos livros e a ganhar uma densidade opressora.


E então, você entra no memorial propriamente dito. É uma intervenção na paisagem que fala uma linguagem de ferro, pedra e sofrimento congelado. Não é uma reconstituição; é uma interpretação visceral, uma ferida aberta na topografia. Uma imensa área é coberta por uma camada profunda de pedras irregulares, escuras, como escórias vulcânicas ou carvão extinto. São milhões de fragmentos, cada um representando, simbolicamente, uma vida reduzida a pó, mas juntos formando um mar estático, uma paisagem lunar da morte. Sobre este mar mineral, erguem-se estruturas de aço retorcido, negras, enferrujadas. Não são formas reconhecíveis – são espasmos de metal, agulhas que perfuram o céu pálido, curvas que se contorcem como corpos em agonia final. O arame lembra, inevitavelmente, as cercas eletrificadas, mas aqui ele transcende o símbolo; ele é a própria materialização do tormento, a ossatura de um pesadelo. O caminho que se percorre é uma trincheira estreita, escavada nesse campo de pedras, que serpenteia de forma tortuosa. Você caminha abaixo do nível da morte simbolizada, como se percorresse um túnel no subsolo da história, flanqueado por paredes de rocha fria e escuridão. A luz do dia entra apenas por cima, de forma intermitente, criando sombras dramáticas e efêmeras. É um percurso claustrofóbico, desorientador, que evoca o caminho para as câmaras de gás – uma descida forçada rumo ao nada. A esperança, se existe, está apenas na luz distante lá em cima, quase inalcançável, filtrada pelo arame que se entrelaça como uma teia de aranha gigantesca.


Ao longo deste caminho infernal, surgem inscrições, símbolos gravados na pedra ou no metal. Trilhos de trem, deformados, amontoados como ossos de um animal colossal e extinto. Silhuetas estilizadas que podem ser corpos em pilhas, ou talvez apenas sombras projetadas pela mente aflita. Representações abstratas de fogo, do ato de queimar, não como labaredas, mas como marcas negras, cicatrizes de calor intenso. Cada símbolo é um golpe silencioso, um eco visual do processo industrial de extermínio que ali operou com eficiência demoníaca. A escala do lugar é esmagadora. O mar de pedras parece perder-se no horizonte, uma imensidão que tenta, desesperadamente, dar conta da imensidão do crime. E no centro, ou em pontos estratégicos dessa geografia da perda, erguem-se monólitos de pedra maciça, brutos, como pedras tumulares colossais para povos inteiros. São inertes, pesados, radiantes de uma tristeza mineral que parece emanar deles.


E então, no meio dessa devastação simbólica, um detalhe que corta a respiração: um trecho de trilho de trem original, preservado, encravado no chão como uma relíquia profana. Ele não leva a lugar nenhum agora; termina abruptamente no meio do memorial, como se a própria ferrovia da morte tivesse sido interrompida pela magnitude do horror que transportou. Ver aqueles trilhos, reais, tocados pelas rodas dos vagões que trouxeram centenas de milhares para o abismo final, é um choque de realidade dentro da abstração. É a conexão física, tangível, com a logística do genocídio. Cinco minutos, dez minutos? Quanto tempo levava a viagem final dentro daquele vagão? O pensamento é insuportável. Quinhentos mil judeus. Milhares de poloneses, ciganos, sinti. Números que, ao pisar aquele solo, ao percorrer aquele caminho abaixo das pedras, deixam de ser estatística. Transformam-se em peso, em uma opressão no peito, em um grito mudo que vibra nos ossos. Dois ou três sobreviveram. Dois ou três. A exceção que confirma a regra da aniquilação quase perfeita. E saber que uma sobrevivente encontrou refúgio, vida, talvez até alguma paz, no Brasil – terra distante, quente, vibrante – é um contraponto dolorosamente belo, um fio de resiliência tecido na imensa tapeçaria da destruição. Onde estaria ela agora? O que seus olhos, que viram o inferno em Bełżec, contemplavam ao olhar para as praias de Copacabana ou a selva amazônica?


A quietude do lugar é a sua voz mais alta. Não há multidões, como em Auschwitz. O vento sopra livre, carregando talvez o último vestígio de poeira que um dia foi gente. As pedras, sob os sapatos, rangem com um som seco, definitivo. Você se sente observado não por fantasmas, mas pelo próprio vazio que eles deixaram. É um vazio ativo, consciente, que suga a luz e o som. O memorial, por mais poderoso que seja, é apenas um ponto de interrogação monumental erguido sobre um buraco negro da história. Ele não explica; ele confronta. Ele não reconstrói; ele lamenta. Ele força a mente a preencher o vazio com imagens que nenhum filme, nenhum livro, nenhuma fotografia jamais poderá transmitir plenamente: o cheiro da morte em escala industrial, o terror dos últimos instantes, o desespero silencioso, a eficiência burocrática do mal.


Sair de Bełżec não é um alívio. É um desenraizamento. Você carrega consigo o mar de pedras, o aço retorcido, o fim abrupto daquele trilho solitário. Carrega o peso dos 500.000, o eco do milhão e setecentos mil. Carrega a imagem daquela sobrevivente no Brasil, um milagre frágil contra um dilúvio de ódio. O campo foi apagado, mas a terra está grávida de cinzas. O memorial não é um túmulo; é um grito de pedra e metal contra o esquecimento, uma tentativa desesperada de dar forma ao informe, de materializar o vazio que o mal absoluto deixou para trás. Bełżec ensina que a memória mais profunda, por vezes, não reside no que se mostra, mas no que se esconde, no que foi tão completamente destruído que sua ausência se torna a presença mais opressora de todas. Você deixa aquele lugar não como um visitante, mas como uma testemunha do vazio. E o vazio, uma vez visto, nunca mais te abandona. Ele sussurra, no silêncio da sua mente, a pergunta que não cala: como pôde a humanidade cavar, ali, naquelas terras férteis da Polônia, um abismo tão profundo, e depois tentar cobri-lo com terra e silêncio? O memorial é a resposta: porque o abismo ainda está aberto. E pede, não flores, mas uma vigilância eterna, uma escuta atenta ao grito que emana do silêncio das pedras.

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