Capítulo 7: A Máquina Intacta
A Máquina Intacta
A memória é um músculo que dói. Algumas feridas não cicatrizam; apenas aprendemos a conviver com a sua presença fantasmagórica, um peso que nos curva os ombros quando menos esperamos. Majdanek é uma dessas feridas abertas no flanco da história, uma cicatriz tão vívida, tão presente, que parece sangrar ainda. De todos os lugares onde o mal se sistematizou, onde a engrenagem da aniquilação girou com precisão industrial, talvez Majdanek seja o mais insidiosamente assustador. Não pela escala monstruosa de Auschwitz, nem pelo véu de segredo quase absoluto de Treblinka. Mas pela sua crueza preservada. Pelo seu funcionamento congelado no tempo.
Quando os soldados soviéticos romperam os portões em julho de 1944, encontraram não ruínas, mas uma máquina ainda quente. O comandante, Karl Otto Koch, e seus capangas, na debandada caótica da retirada, não tiveram tempo – ou talvez a arrogância de achar que não precisavam – de apagar as evidências com a meticulosidade habitual. Não houve explosões sistemáticas, incêndios totais, tentativas frenéticas de dissolver o indissolúvel. Majdanek ficou ali, na periferia de Lublin, uma cidade que respirava e vivia enquanto o horror se desenrolava a poucos passos, como um tumor maligno ignorado até ser tarde demais. Como alguém do museu, com uma frieza que só a convivência diária com o inenarrável pode trazer, me disse: "Noventa por cento está aqui. É só ligar na tomada, e o campo volta a funcionar." A frase ecoou dentro de mim como um badalar fúnebre. Não era uma metáfora. Era uma possibilidade palpável, aterrorizante na sua simplicidade burocrática.
A aproximação já é um golpe. Diferente de outros campos, escondidos em florestas ou terrenos ermos, Majdanek se impõe na paisagem. Você vê a cerca de arame farpado, as torres de vigilância, os barracões de madeira e tijolo se estendendo em fileiras implacáveis, tudo isso a um sopro da normalidade de Lublin. Era Majdane Tatarski antes, um subúrbio qualquer. Depois virou Konzentrationslager Lublin. E, finalmente, Majdanek, um nome que parece um sussurro rouco na garganta. O tamanho, comparado a Auschwitz, é menor. Mas essa relativa "intimidade" torna tudo mais opressivo. Não há espaço para se perder na vastidão; o mal está concentrado, denso, sufocante. Cada passo reverbera no silêncio pesado, um silêncio que parece absorver até o canto dos pássaros.
Entrar é atravessar um portal para um pesadelo que não terminou. O ar é diferente – mais frio, mais seco, carregado de uma poeira fina que gruda na garganta e parece conter ecos de gritos abafados. As construções estão lá, não como reconstruções didáticas, mas como testemunhas originais, desgastadas pelo tempo e pelo uso, mas de pé. O chão de terra batida, marcado por incontáveis passos arrastados. Os barracões, longos e baixos, com suas fileiras de beliches de madeira crua, três andares de prateleiras humanas. Tocar naquela madeira áspera, sentir o frio do metal enferrujado das estruturas, é tocar a própria superfície do sofrimento passado. É muito real. Não há artifício museológico que atenue o impacto. Você está dentro da máquina.
Caminhar pela Appellplatz, o pátio das intermináveis chamadas, sob o olhar cego das torres, é sentir uma solidão cósmica. Imaginar corpos esqueléticos tremendo de frio e terror sob a neve, ou definhando sob um sol implacável, enquanto nomes eram gritados e contagens absurdas se prolongavam por horas. A banalidade do terror. Cada edifício administrativo, cada escritório onde ordens de morte eram datilografadas em triplicata, cada enfermaria que era apenas um antechamber da câmara de gás, está ali. Intacto. Você pode entrar na sala do comandante, imaginar o cheiro de couro e tabaco misturado ao fedor distante que vinha das covas. Pode ver os fornos do crematório, pequenos, eficientes, horrendamente preservados, suas portas de ferro fundido abertas como bocas famintas que nunca se saciaram. A maquinaria da morte, exposta sem véus. É possível ver o processo, passo a passo, da chegada à redução a cinzas, apenas percorrendo o caminho que os prisioneiros percorriam. A eficiência é obscena.
Mas há um lugar em Majdanek que transcende o horror concreto e atinge o abismo metafísico. Após passar pelo campo principal, pelos barracões, pelo crematório, você chega a uma colina. No topo, sob uma cúpula gigantesca, aberta ao céu como uma ferida exposta, está *o* memorial. A princípio, confunde-se. Parece uma grande pilha de terra escura, algo natural. Então você se aproxima. E os olhos começam a distinguir, misturados à terra, fragmentos brancos. Minúsculos. Inúmeros. Ossos. Ossos humanos calcinados, triturados, reduzidos a lascas insignificantes. É uma montanha. Uma montanha feita de cinzas e fragmentos de esqueletos. Centenas de milhares de vidas reduzidas a aquilo. Sob a vastidão do céu polonês, dentro daquela estrutura que não protege, apenas expõe, a evidência final repousa. Não é uma metáfora. É literalmente o que sobrou. Ver aquilo, de perto, sentir o peso físico e moral daquela massa informe que já foi gente, com histórias, amores, medos, risos... é um golpe no plexo solar da alma. É o silêncio mais ensurdecedor que já ouvi. É a negação absoluta de tudo o que é humano. Pedaços de ossos visíveis, testemunhas mudas daquilo que a linguagem falha miseravelmente em descrever. O vento assobia suavemente por entre as grades da cúpula, levando consigo partículas infinitesimais que já foram corpos. É assustador além de qualquer medida racional.
Majdanek não é um monumento ao passado. É um espelho. Um espelho quebrado, sim, mas cujos estilhaços ainda refletem, com uma clareza brutal, o que o homem é capaz de fazer ao seu semelhante quando a humanidade é desligada como um interruptor. A preservação não é um acaso; é uma acusação perpétua. Aquele campo, com seus barracões, seus arames, seus fornos e sua montanha de cinzas, grita que o mal não é uma anomalia histórica confinada a um tempo e lugar distantes. É uma possibilidade latente. A "tomada" mencionada pelo funcionário do museu não é apenas elétrica; é moral. Basta o consentimento, a indiferença, o ódio cultivado, o medo instrumentalizado, para que a máquina seja religada. A sua integridade física é um lembrete visceral e agonizante de que os mecanismos do inferno são terrivelmente simples, construídos com tijolos, arame farpado, papelada e a abdicação da compaixão.
Sair de Majdanek não é deixar um museu. É emergir de um pesadelo que continua vivo, respirando lentamente naquele pedaço de terra maldita às portas de Lublin. O sol do lado de fora parece mais frio. As cores do mundo parecem desbotadas. E você carrega consigo não apenas a memória, mas a certeza perturbadora de que o que viu não está trancado no passado. Está ali, intacto, esperando. A máquina está pronta. O verdadeiro terror de Majdanek reside nessa verdade insuportável: o interruptor existe. E mãos humanas o construíram, e mãos humanas podem, um dia, acioná-lo novamente. A montanha de cinzas sob a cúpula aberta é o testemunho final e mudo dessa possibilidade sempre presente. Ela sussurra, com a voz rouca de milhões: Lembrai-vos. E temei.
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