segunda-feira, 28 de julho de 2025

Capitulo 8 : Majdanek. Frio.

O frio em Majdanek não é meteorológico. É um frio histórico, ancestral, que se instala nos ossos antes mesmo de penetrar na carne. Quando os pés pisam o solo gelado de Lublin, em dezembro, a primeira sensação é de ser devorado por uma geografia do desespero. O vento corta como lâminas, arrastando flocos de neve suja que se acumulam sobre os telhados dos barracões — estruturas cinzentas que se estendem até onde a vista alcança, como um exército de fantasmas congelados no tempo. "Frio. Muito frio", anotei no caderno, mas as palavras pareciam insignificantes diante daquela temperatura que queimava como um ácido na alma. A paisagem não tem cores, apenas gradações de cinza: o céu de chumbo, as paredes descascadas dos blocos, a terra batida onde nem a mais teimosa erva ousa brotar. É um mundo desaturado, uma fotografia que o tempo esqueceu de revelar.

Quando os soldados soviéticos arrombaram os portões em 22 de julho de 1944, não encontraram ruínas. Encontraram uma máquina de morte em pleno funcionamento, abandonada às pressas por carrascos em fuga. Os nazistas não tiveram tempo de dinamitar as evidências, de queimar os arquivos, de dissolver o horror em cal. Majdanek permaneceu ali, intacto, como um organismo cujas vísceras foram expostas ao mundo. Um guarda do museu, com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco surrado, diz sem emoção aparente: "Noventa por cento está original. É só ligar na tomada, e o campo volta a funcionar". A frase paira no ar gelado, mais aterrorizante que qualquer descrição de atrocidades. Porque revela a verdade fundamental: o mal não é uma anomalia. É um sistema. E sistemas podem ser reativados.

O que torna Majdanek único é sua proximidade obscena com a vida. Auschwitz escondia-se em florestas remotas; Treblinka enterrava-se em terras ermas. Majdanek ergue-se a quatro quilômetros do centro de Lublin. Moradores acordavam com o cheiro de carne queimada pairando sobre as chaminés. Crianças viam, das janelas de suas casas, fileiras de esqueletos em uniformes listrados arrastando-se na neve. O campo nasceu em outubro de 1941 por ordem direta de Himmler — primeiro como prisão para prisioneiros de guerra, depois transformado em fábrica de aniquilação com capacidade para duzentos e cinquenta mil almas. Seu nome veio do subúrbio onde se implantou, Majdan Tatarski, mas os alemães rebatizaram-no com frieza burocrática: Konzentrationslager Lublin. Campo de Concentração de Lublin. Um nome que poderia ser o de um armazém ou estação ferroviária.

Passo sob o portão de ferro onde ainda pende, corroído pela ferrugem, o dístico infame: "Arbeit Macht Frei". O trabalho liberta. Mas em Majdanek, o trabalho só acelerava a morte. Homens e mulheres desfaziam-se nas fábricas de munição da Steyr-Daimler-Puch, triturando seus próprios ossos enquanto fundiam cartuchos para matar outros como eles. O campo era um ecossistema completo de horror: lavanderias onde uniformes de mortos eram fervidos em caldeirões, enfermarias onde médicos aplicavam injeções de fenol diretamente no coração, barracões com prateleiras humanas de três andares onde os vivos dormiam sobre cadáveres noturnos. Karl Otto Koch, o primeiro comandante, governava este reino com sua esposa Ilse — a "Cadela de Buchenwald" — cujo passatempo era colecionar pele tatuada de prisioneiros. Sua casa permanece de pé, janelas limpas voltadas para as câmaras de gás. Podemos imaginá-la, após jantares elegantes com oficiais das SS, observando pela vidraça as labaredas laranjas do crematório dançando no horizonte noturno.

Adentro o Bloco 41. Aqui está guardado o segredo mais obsceno. As câmaras de gás são pequenas, quase domésticas, com paredes pintadas de azul-claro como um quarto de criança. Canos falsos no teto simulam chuveiros. As portas têm revestimento de borracha para vedar os gritos. Majdanek foi um dos dois únicos campos (com Auschwitz) a usar o Zyklon B — aqueles cristais azuis que transformavam ar em veneno. Mas preferiam o monóxido de carbono: mais barato, mais eficiente, mais industrial. Ao lado, os fornos permanecem com suas bocas abertas. Cinco gargantas de ferro fundido, manchadas de fuligem eterna. Os soviéticos encontraram restos humanos semi-calcinados dentro, como oferendas interrompidas. Calcula-se que setenta e oito mil pessoas viraram fumaça nestas fornalhas — cinquenta e quatro mil judeus, o resto poloneses, russos, ciganos. Os números são disputados, mas os fornos não mentem: cada um consumia três corpos por hora. A eficiência era um ritual sagrado. Homens do Sonderkommando, fantasmas entre fantasmas, arrastavam cadáveres com ganchos de metal, arrancavam dentes de ouro com alicates, empilhavam corpos como lenha numa lareira de pesadelo.

O que diferencia Majdanek é a presença palpável do passado. É possível tocar as paredes das barracas 44 e 47, onde mulheres eram despidas antes da execução. A madeira ainda exala um cheiro agridoce — suor, sangue menstrual e desespero impregnados nos veios da madeira. Nos depósitos, montanhas de sapatos infantis deformados pelo tempo formam uma topografia do luto. Um sapatinho vermelho de saltinho minúsculo destaca-se na monótona pilha de couro marrom. Pertenceu a quem? Que risos ecoaram antes do silêncio? Qual história de amor terminou aqui, entre estas paredes?

Tudo neste lugar conduz a uma colina no extremo do campo. Após horas caminhando sob o vento glacial, com os dedos dormentes e a alma em frangalhos, chegamos ao monumento. Não é uma escultura, não é uma construção. É uma montanha de cinzas humanas sob uma cúpula aberta ao céu. Setecentos metros cúbicos de fragmentos acinzentados, salpicados de branco: lascas de ossos que desafiaram o fogo. O vento levanta remoinhos de pó fino — partículas de vidas que foram mães, poetas, crianças brincando em quintais, amantes trocando juras. A neve cai sobre eles, derretendo-se ao contato como lágrimas celestes. É o único gesto de pureza neste solo profanado. Um homem de sobretudo preto, de pé diante da montanha, murmura para o vento: "Minha avó está ali". Ele aponta não para um ponto específico, mas para a massa indistinta. "Trouxe uma pedra da nossa aldeia na Ucrânia". Deixa cair a pedra na encosta. O som é abafado, como se a terra engolisse até as lágrimas.

Em outubro de 2005, quatro sobreviventes voltaram a este inferno congelado. Velhos de mãos trêmulas, guiaram arqueólogos a pontos precisos do campo. Cavaram a terra endurecida e desenterraram cinquenta objetos que prisioneiros enterraram como cápsulas do tempo: alianças torcidas pelo desespero, relógios parados em horas aleatórias, brincos em forma de estrela, moedas de nações extintas. Cada peça era um ato de rebelião silenciosa — uma mensagem lançada ao futuro. "Estivemos aqui", sussurravam esses objetos. "Não nos reduzam a números." Seguro a foto de uma dessas alianças. Dentro do aro, uma inscrição quase apagada: "Para Ester, amor eterno. David, 1938". Amor eterno em Majdanek durava até a próxima seleção.

Quando os soviéticos transformaram o campo em prisão da NKVD, aprisionando resistentes poloneses nos mesmos barracões, completou-se o ciclo perverso da desumanização. A máquina apenas mudou de dono. Os mesmos arames, as mesmas torres, o mesmo frio. Majdanek não é uma relíquia do passado. É um espelho quebrado, mas cujos estilhaços ainda refletem a face mais sombria da condição humana. Ao sair, com as mãos dormentes e o coração um bloco de gelo, olho para trás. Os barracões se perdem na névoa vespertina. O vento uiva entre os arames como almas perdidas. E a montanha de cinzas permanece, silenciosa e imóvel, sob a cúpula aberta. Ela não acusa. Não chora. Apenas existe — testemunha muda de uma verdade que nos persegue: que o mal não é excepcional. É banal. E está sempre à espera, intacto, pronto para ser religado. Como disse Primo Levi: Aconteceu, portanto pode acontecer de novo. Majdanek é o monumento dessa possibilidade eterna. E seu frio nunca nos abandona.

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