segunda-feira, 28 de julho de 2025

A FÁBRICA DE DESFAZER HUMANOS (Majdanek)

A FÁBRICA DE DESFAZER HUMANOS

A floresta engole tudo. Ao descer do trem em Treblinka, a primeira sensação é de abandono cósmico. Árvores retorcidas pelo inverno formam um túnel escuro que parece conduzir não a um lugar, mas a um estado de alma. Caminho por estradas secundárias onde a neve suja se acumula em sulcos profundos, e o silêncio é tão absoluto que dói nos tímpanos. "Floresta e distância", anoto no caderno já úmido de neve derretida, mas as palavras não capturam a essência deste desamparo. É como se a terra aqui tivesse sido desconsagrada, amaldiçoada por uma geografia do esquecimento. Os pinheiros cerram fileiras compactas como guardiões de um segredo demasiado hediondo para a luz do dia.


Quando os primeiros sinais do campo aparecem, não são torres ou cercas, mas pedras. Milhares de pedras irregulares juncando uma clareira imensa, cada uma representando uma aldeia, uma cidade, um gueto varrido do mapa. A ausência de estruturas é mais aterrorizante que qualquer barracão preservado. Treblinka não foi um campo de concentração: foi uma linha de montagem da morte, construída com único propósito de desmontar seres humanos em componentes descartáveis — cabelos para estofamento, dentes de ouro para cofres, cinzas para fertilizante. Os nazistas não apenas mataram aqui; desinventaram pessoas.


A caminhada até o coração do inferno parece interminável. Minhas botas afundam na lama congelada, seguindo o mesmo trajeto que os vagões superlotados percorriam em 1942. Sinto uma náusea crescente, não por causa do horror antecipado, mas pela constatação perturbadora: estou me acostumando. Depois de Majdanek, depois de Belzec, depois de Auschwitz, a tristeza transformou-se num peso familiar, uma depressão profissional que se instala nos músculos. O perigo não é a comoção, mas sua ausência.


A ENGENHARIA DO NADA

Treblinka operava com a lógica de um matadouro industrial. Dividido em duas seções — Treblinka I (campo de trabalho) e Treblinka II (campo de extermínio) —, seu projeto revelava uma genialidade perversa. Enquanto outros campos simulavam fachadas de banhos ou hospitais, aqui a farsa era mínima. Os trens descarregavam diretamente numa plataforma onde os Sonderkommandos, judeus forçados a participar da própria aniquilação, já aguardavam sob cassetetes. O processo era tão mecanizado que os recém-chegados podiam estar mortos em 120 minutos, seus corpos cremados antes que a fumaça do trem se dissipasse no céu.


O que mais perturba é a hierarquia do horror. Os alemães criaram "castas" entre os escravos: o "comandante judeu" coordenando operações, kapos supervisionando "comandos" especializados — limpeza, lenhadores, extração dentária. Havia até um "comando dourado" encarregado de fundir joias roubadas. Esta burocracia da degradação transformava vítimas em cúmplices, distorcendo a sobrevivência em traição. Um sobrevivente descreveu o dilema: "Matávamos para viver mais um dia, sabendo que amanhã seríamos nós na vala".


Adentro a área onde ficava a "estação" — assim chamavam o complexo de câmaras de gás alimentadas por motores de tanque soviético capturados. O chão está coberto por uma crosta negra de cinzas compactadas. Em 1943, quando a revolta estourou, os rebeldes encontraram aqui pilhas de cadáveres esperando cremação tão altas que oscilavam ao vento. Hoje, apenas uma depressão no solo marca o local. A natureza tenta curar a ferida com musgo e ervas daninhas, mas algo na terra rejeita vida: o solo é ácido, envenenado por décadas de restos humanos dissolvidos.


A REVOLTA DOS CONDENADOS

Em 2 de agosto de 1943, o impossível aconteceu. Homens reduzidos a esqueletos, sabendo-se marcados para morte, roubaram armas do arsenal. Sob liderança do ex-oficial do exército polonês Jankiel Wiernik, atacaram guardas ucranianos com machados, incendiaram barracões e correram para os bosques. Dos 850 prisioneiros, apenas 68 sobreviveram à fuga inicial. Destes, só 15 sobreviveram à guerra.


Caminho até o memorial da revolta: uma pedra lascada emergindo do solo como um punho cerrado. Aqui, entre estas árvores que testemunharam fugas desesperadas, a floresta não é mais cúmplice do silêncio, mas santuário da resistência. Sinto uma vibração diferente — não de terror, mas de fúria sagrada. Um sobrevivente relatou: "Corremos até os pinheiros. Os tiros zuniam como vespas. Caía gente ao meu lado. Corri até não sentir mais as pernas".


O SILÊNCIO PÓS-EXPLOSÃO

No centro do campo, ergue-se o monumento mais perturbador: uma coluna de granito negro esculpida com figuras retorcidas. Ao seu redor, 17 mil pedras — não lápides, mas marcas de ausência. Algumas têm nomes: VARSÓVIA, ŁÓDŹ, BERLIM. Outras apenas números. A maior parte permanece anônima, como as vítimas que representam.


Mas é numa clareira afastada que Treblinka revela seu segredo mais obsceno. Aqui ficavam os "poços de cinzas" — valas de 50 metros onde restos humanos eram misturados com cal. Mesmo hoje, setenta anos depois, escavações clandestinas revelam fragmentos ósseos. Em 2019, um arqueólogo encontrou um pequeno pendente de prata com a inscrição "Mazal Tov" junto a um osso infantil. A terra de Treblinka se recusa a digerir seu passado.


Ao anoitecer, quando a neve começa a cair pesadamente, sento-me num banco de granito frio. O guarda do museu, um homem de olhos cor de aço, aproxima-se: "Você é o último hoje". Sua voz ecoa no vazio. "Treblinka não foi destruída pelos nazistas. Eles a desmontaram peça por peça em 1943, plantaram batatas, colocaram um fazendeiro ucraniano aqui. Quase conseguiram". Ele apaga a lanterna, mergulhando-nos na escuridão azulada. "Mas a terra guarda memórias. Sopre sobre o solo numa manhã de geada. Às vezes, cinzas sobem como fantasmas".


Caminho de volta pela floresta, o crepúsculo tingindo os pinheiros de roxo. Os ramos se entrelaçam acima, formando um novo Schlauch natural. Treblinka me ensina algo pior que o horror: a eficiência do esquecimento. Enquanto Auschwitz se tornou ícone, este lugar permaneceu na sombra — não por ser menos monstruoso, mas por ter sido mais eficaz em apagar-se. Das 900 mil a 1,1 milhão de vítimas, apenas 150 nomes foram identificados. O resto são números, estimativas, pontos de interrogação históricos.


Ao chegar à estação, vejo um trem de carga passar, seus vagões batendo nos trilhos com um som metálico e oco. O mesmo som que anunciava a chegada ao inferno. Treblinka não acabou. Apenas mudou de endereço. E enquanto o trem desaparece na noite, carregando sua carga invisível, percebo o verdadeiro legado deste lugar: não a lembrança do que foi feito, mas o alerta silencioso do que ainda pode ser refeito. A fábrica de desfazer humanos nunca fecha. Apenas aguarda nova encomenda.

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