segunda-feira, 28 de julho de 2025

capitulo 9 A PELE DO MUNDO RASGADA EM DACHAU

A PELE DO MUNDO RASGADA EM DACHAU

Cheguei sob um céu de chumbo fundido, aquele cinza que não é cor mas ausência de cor, e o frio não era temperatura, era uma condição da alma. As pequenas cidades no caminho pareciam bonecas de porcelana – casinhas com telhados íngremes, jardins dormindo sob a geada, chaminés cuspindo fumo aconchegante. Tudo tão ordenado, tão humano. E então o estacionamento, banal como o de um supermercado, e os trilhos. Os trilhos antigos surgiram como uma cicatriz na neve suja, serpenteando até o portão. Foi ali, naquele instante preciso em que a sola da bota tocou o aço oxidado dos dormentes, que a tempestade interior chegou. Não trovoadas, mas um silêncio elétrico, aquele que precede o dilúvio quando o mundo segura a respiração.


O portão. Arbeit Macht Frei. O trabalho liberta. Mentira forjada em ferro, cada letra um dente na boca do demônio. E ao atravessá-lo, o corpo não atravessava espaço, mas tempo. De repente as árvores alinhadas como soldados não eram árvores, eram espectros esqueléticos guardando fileiras de barracões que se perdiam na névoa. E eu vi. Não com os olhos da cara, mas com os olhos da medula. A fumaça subindo do crematório à direita – espessa, acre, carregando restos de sonhos e unhas e cabelos que foram crianças. E as figuras. Mulambos ambulantes, trapos humanos arrastando pés sem sapatos na lama congelada. Rostos? Não rostos, mas buracos onde rostos deveriam estar, olhos que já não refletiam luz alguma porque haviam visto o fundo do poço da espécie. A tristeza ali não era sentimento, era estado da matéria. Como ar que se solidifica. Como se a humanidade tivesse desistido de si mesma, aceitado que era apenas carne para sofrimento e fornos. E eu, espectro entre espectros, perguntava não ao campo, mas ao abismo dentro de mim: como conceber? Como conceber essa engrenagem perfeita para triturar almas? Porque não era sobre crimes. Era sobre existir. Sobre ter um nariz, um sobrenome, uma oração no coração que não coubesse na medida do ariano. Eram condenados pela geometria do crânio, pelo mapa dos genes, por um ódio tão abstrato que nem seus carrascos poderiam defini-lo em palavras. Sonhavam com o quê, esses homens de uniforme preto? Com um mundo higienizado? Com o silêncio eterno dos diferentes? Era um sonho de formigas loucas, devorando a própria colônia.


Eram pensamentos. Pensamentos que rugiam dentro do crânio como animais enjaulados. Mas a paisagem os alimentava. Cada passo na alameda infinita era uma pá de carvão jogada nessa fornalha mental. E então as fotos. Placas pregadas como estigmas nos muros. Uma em particular: o corpo enroscado nos arames farpados, espasmo final congelado em preto e branco. Fuga interrompida por balas ou eletricidade. Exemplo para quem ousasse sonhar com o sol. Olhei para aquela figura retorcida e o mundo desmoronou em categorias. Não mais bem e mal. Apenas isto: um lugar onde o inferno não era metáfora religiosa, era topografia. Era endereço postal. Dachau. Aqui. Agora. E naquele momento, diante da prova fotográfica da capacidade humana de desumanizar, duvidei. Duidei da luz. Da espécie. Do futuro. Era o fim não dos judeus, dos ciganos, dos dissidentes. Era o fim do conceito de humano. Se isto era possível, então tudo era possível. O abismo olhou para mim e eu reconheci – não monstros, mas a face familiar da nossa própria sombra coletiva.


A caminhada até o crematório foi uma peregrinação em terra profanada. Cada passo mais pesado. O ar, dentro daquele prédio baixo de tijolos, tinha peso. Textura. Era espesso como melaço envenenado. A primeira sala, pequena, nua. Desinfecção. Onde se despiam promessas, histórias de amor, nomes de mãe. Onde a pele, última fronteira da identidade, era violada antes mesmo da morte. Depois, a porta. Brausebad. Banho. Mentira pendurada numa tabuleta. Entrei. E foi ali, naquele cubículo de azulejos pálidos sob luzes frias, que o corpo traiu a razão. O ar sumiu. Os pulmões colaram-se às costelas. Uma tontura suja subiu da nuca, um enjoo profundo brotou no estômago. Não era medo. Era o peso físico do mal acumulado. O eco de milhares de gritos sufocados impregnado no reboco, nos canos falsos, no chão escorregadio de esperanças perdidas. Psicologia? Talvez. Mas a carne sabe. A carne lembra o que a mente tenta esquecer.


Sai cambaleando para a sala dos fornos. Quatro bocas negras. Cinco. Aço e tijolos. Não eram grandes. Pareciam fornos de padeiro em escala industrial. Ali se reduzia gente a cinzas. Carne e ossos e memórias transformados em pó neutro. E o cheiro. Um cheiro fraco, insistente. Ferro velho? Cinzas molhadas? Poeira de ossos? Ou apenas a mente, diante da evidência pétrea da aniquilação, fabricando o aroma da morte para preencher o vazio do horror? Não importa. O cheiro estava ali, colado ao paladar, uma assinatura química do extermínio. E a última sala, a mais sombria. O depósito dos que não morreram pelo gás. Fuzilados. Espancados. Famintos. Amontoados como lenha humana antes de seguirem para o fogo. Ali o cheiro era mais forte. Sangue seco? Terror decomposto? Ou apenas o suor frio da minha própria nuca diante do inominável?


Fugi para o bosque. Um alívio enganoso. Pássaros cantavam. Casinhas pitorescas pontilhavam a paisagem além da cerca. Paz bucólica. Mas a floresta em Dachau guarda segredos podres. Valas comuns sob folhas secas. Muros cravejados de marcas de balas – paredões onde homens eram alinhados e transformados em sacos de carne estilhaçada. Lápides para desconhecidos. Um jardim de memórias truncadas. Sentei num banco de granito frio. Isolado. O mundo lá fora – com seus empregos, seus amores, suas preocupações minúsculas – parecia uma brincadeira de mau gosto. Agradeci pela vida? Talvez. Mas mais que isso, imaginei. Transportei-me para 1944. Eu, neste banco? Não. Num barracão, com piolhos e tifo. Ou nu, na sala do Brausebad, engolindo gás. Ou pendurado no arame, exemplo para os outros. Quem seria eu? O carrasco? O prisioneiro? O colaborador silencioso na cidadezinha aconchegante? A pergunta ecoava: onde estaria minha coragem? Minha linha vermelha? Dachau não é passado. É um espelho quebrado refletindo nossas fraturas presentes.


E então, meses depois, veio a revelação. Como uma carta perdida no tempo, um nome surgiu nas pesquisas: Giovanni Lora. Número 117285. O mesmo nome do meu bisavô. Da mesma terra, Montechio Maggiore, Vicenza. Preso em Salzburgo. Enviado a Dachau em 21 de outubro de 1944. Sobreviveu aqui? Não. Foi arrancado deste inferno em novembro, apenas para ser jogado noutro – Ravensbrück, Barth, a fábrica de aviões de Ernst Heinkel. Trabalho escravo até o fim. Até Schwerin, em maio de 1945. Liberto? Ou apenas sobrevivente de um naufrágio da alma?


A informação caiu como uma pedra num lago quieto. Ondas de emoção turvaram a razão. Tristeza? Sim. Mas também um estranho reconhecimento. Um fio invisível puxado através do tempo e da dor. Talvez explicasse o frio único naquele crematório. O sufoco na câmara disfarçada de banho. A tontura. Não era apenas empatia. Era memória celular. Sangue chamando sangue através das décadas. Giovanni Lora. Meu sangue. Meu osso. Passou por este portão. Pisou nestes mesmos trilhos. Talvez tenha olhado para as mesmas árvores esqueléticas. Talvez tenha sentido o mesmo cheiro de morte na sala dos fornos.


Dachau não é um campo. É uma ferida aberta na carne do tempo. Uma prova de que a barbárie não é exceção, mas uma possibilidade latente na condição humana. Os trilhos estão lá. Os fornos estão lá. O portão com sua mentira de ferro está lá. E o bosque, sereno e traiçoeiro. Tudo está lá, intacto. À espera. Não do passado. Mas do futuro que ainda podemos escolher – ou permitir. Giovanni Lora, número 117285, meu quase-ancestral, não é um nome num arquivo. É um grito silencioso que ecoa nessas paredes: Lembrai-vos. E vigiai. Porque a pele do mundo é fina. E em Dachau, ela se rasgou, expondo o osso cru da nossa própria natureza.

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