segunda-feira, 28 de julho de 2025

Capitulo 10 A GEOLOGIA DA AUSÊNCIA

Dachau não começa no portão. Começa nas pequenas estradas que serpenteiam entre colinas bávaras tão perfeitas que parecem pintadas a óleo. Casas de enxaimel com varandas floridas de gerânios, mesmo em dezembro. Vacas de pescoço sinuoso pastando em campos nevados. A normalidade como uma luva de veludo cobrindo o punho de ferro da história. Eu dirigia devagar, como quem se aproxima de um altar profanado, enquanto o céu despejava uma luz plúmbea e gélida sobre os telhados. "Lindas e pequenas cidades", anotei mentalmente, sabendo que essa beleza seria a última armadilha antes do abismo. O estacionamento surgiu à direita, banal como o de um shopping — e ali, quase escondidos sob a neve suja, os trilhos. Velhos, enferrujados, curvando-se para dentro do bosque como dedos ossudos apontando para o centro da terra. Foi quando o corpo soube antes da mente: aquela sensação física de pressão baixa, de tempestade iminente, de pele arrepiada que nada tem a ver com o frio externo. O ar pesava como chumbo líquido nos pulmões.

O portão. Arbeit Macht Frei. As letras de ferro retorcido contra o céu cinza. Não era uma inscrição, era uma gargalhada fúnebre congelada no tempo. Ao transpô-lo, o solo mudou sob meus pés. Não geografia, mas geologia moral. A alameda central estendia-se como um corredor de espelhos quebrados — de cada lado, fileiras intermináveis de barracões baixos, telhados inclinados cobertos de neve suja. Árvores esqueláticas alinhadas com precisão militar. E então, como um golpe no plexo solar, a visão: não apenas a neblina do presente, mas a fumaça espessa e negra subindo do crematório ao fundo. Não era alucinação. Era a memória da terra vomitando seu passado. Vi formas humanas — não corpos, mas sombras de corpos — arrastando-se na lama. Mulambos encardidos enrolados em trapos que outrora foram uniformes. Rostos? Não, máscaras de osso recobertas por pele transparente, olhos cavos onde a chama da consciência já se apagara. A tristeza ali não era emoção: era elemento químico, componente do ar, partículas suspensas que se grudavam na garganta.

Como conceber? A pergunta brotou das pedras molhadas. Como conceber a engenharia precisa dessa desumanização? Jovens de Munique pedalando bicicletas ao longo das cercas externas, ouvindo talvez os gritos abafados. Famílias sentadas a mesas postas com toalhas de linho, cortando bratwurst enquanto a fumaça de corpos humanos subia a poucos quilômetros. A banalidade do mal não está nos monstros; está na xícara de café segurada por mãos indiferentes que escolhem não ver. A agressão não era contra criminosos, mas contra a própria ideia de semelhança. Homens que compartilhavam o mesmo esquema ósseo, o mesmo sangue vermelho, os mesmos sonhos noturnos — reduzidos a abstrações perigosas por uma ideologia de laboratório. E o mais aterrorizante: quantos daqueles carrascos sabiam realmente o que sonhavam? O ódio como mandato burocrático, assinado em triplicata.

A caminhada até o crematório foi uma peregrinação através de camadas de tempo. O chão rangia sob meus passos com o mesmo som descrito por sobreviventes — o ranger de tamancos de madeira sobre gelo. Fotografias em placas de metal surgiam como fantasmas: corpos enroscados nos arames farpados, eletrocutados ou crivados de balas. Um em particular: um homem jovem, braço estendido para o céu como se agarrando a um fio invisível, pernas contorcidas numa dança macabra. Seu crime? Tentar alcançar o bosque além da cerca. Seu castigo? Transformar-se em advertência. Ali, diante daquela imagem, o conceito de inferno evaporou como abstração teológica. Inferno tem CEP: Alte Römerstraße 75, Dachau, Alemanha.

O edifício do crematório baixava sobre a paisagem como um tumulo industrial. Dentro, o ar coagulava. Primeira sala: paredes nuas, azulejos brancos descascados. Desinfecção. Onde se despiam não apenas roupas, mas identidades. Nomes, profissões, amores — tudo deixado em pilhas no chão gelado. Depois, a porta de madeira pesada. Brausebad. Banho. O eufemismo mais letal da história. Entrei. E ali, sob luzes fluorescentes que projetavam sombras de água falsa no chão, o corpo rebelou-se. O ar desapareceu. Uma mão invisível apertou minha garganta. Tontura, náusea, uma pressão no peito como se o coração quisesse escapar da caixa torácica. Psicossomático? Sem dúvida. Mas também profundamente real — a memória celular do gás ainda suspenso nas moléculas de ar, o terror impregnado no cimento.

Sala seguinte: os fornos. Cinco bocas negras de ferro fundido, portas abertas como convite macabro. Toquei a superfície — fria, mas com a memória residual de mil graus Celsius. Foi aqui que Giovanni Lora, meu quase-ancestral, evitou terminar. Seu corpo não virou cinzas nestas gargantas metálicas. Mas outros tantos sim. O cheiro insistente: cinzas úmidas? Carne queimada fossilizada na argamassa? Ou apenas o perfume fantasma que a mente fabrica para dar forma ao horror?

A última sala — o depósito dos "diferentes". Os que não morreram pelo Zyklon B, mas por balas, doenças, espancamentos. Corpos amontoados como sacos de grãos antes da incineração. Aqui o cheiro era mais denso: ferro oxidado e algo adocicado — odor de sangue antigo que os séculos não dissipam.

Fugir para o bosque foi um ato de sobrevivência psicológica. Pássaros cantavam em pinheiros cobertos de neve. Casinhas com cortinas rendadas observavam além das cercas. A paz era uma facada. Porque sob as folhas secas jaziam valas comuns. Nos muros de tijolos à esquerda, marcas de balas como crateras lunares — paredões de execução onde prisioneiros eram alinhados ao amanhecer. Lápides sem nomes. Um jardim minimalista para "desconhecidos". Sentei num banco de granito, o frio penetrando o casaco. Agradecer pela vida? Talvez. Mas mais que isso, mergulhar na pergunta que queima: onde estaria eu? No barracão 7, tosse tísica misturada aos gemidos? Na sala do Brausebad, engasgando com gás? Ou na cidade aconchegante, justificando o injustificável com "ordens superiores"?

Meses depois, a revelação chegou como carta tardia do front. Giovanni Lora. Número 117285. Montechio Maggiore. Dachau, 21 de outubro de 1944. Ravensbrück. Commando Barth. Os detalhes técnicos — horários, tarefas, datas — formavam um mapa do inferno:

As 4:30 da madrugada não eram hora, era um estado de ser. O despertador soava como um tiro. Giovanni levantava num barracão onde o frio do Báltico moldava geadas nas paredes. Lavar-se significava água gelada cortando como navalha na pele, sem sabão, sem dignidade. Bettenbauen — fazer camas com preciosismo matemático sob o chicote do Kapo. Café da manhã: água suja tingida de negro servida em latas que deixavam gosto de sangue na boca.

Às 6:00, a chamada no pátio. Neve misturando-se ao vapor dos pulmões exaustos. "Häftling 117285!" O triângulo vermelho — "prisioneiro político" — brilhava como estigma. Marcha rumo aos Müller-Werke. Fábrica de aviões Ernst Heinkel. Dentro, o ar era óleo quente e medo. Soldando peças para as bombas voadoras V1 e V2, Giovanni via Londres arder em mapas operacionais. Seus dedos construíam instrumentos de morte enquanto seu estômago encolhia de fome.

A comida era tortura calculada. Sopa aguada de nabo ao meio-dia. À noite, o pão duro repartido com um adolescente judeu húngaro (nº 45891), cujos olhos já anunciavam a morte por tifo. As rações eram armas de destruição lenta. Os sapatos de madeira, câmaras de tortura móveis que esfolavam até o osso.

As mulheres trabalhavam na linha adjacente — ciganas com triângulos pretos, polonesas com faces cavadas. Helena, 16 anos, caiu morta ao lado de um torno mecânico numa manhã de janeiro. Seu corpo ficou como monumento à eficiência nazista até o pôr do sol.

Abril de 1945 trouxe o tifo e os condenados de Pölitz: 385 esqueletos com tifo, incluindo meninos de 14 anos. O Galgenberg ("Monte da Forca") engolia corpos em valas rasas. Giovanni, no Leichenkommando, carregou uma mulher grávida. A foto do bebê sorridente que caiu de seu casaco ele escondeu sob a língua — relíquia de um mundo onde a inocência ainda existia.

30 de abril. Paul Heussler fugiu num Opel Capitão. O campo implodiu. A marcha da morte começou sob chuva ácida. Rostock era o destino fictício. Na realidade, o destino era o extermínio final. Três dias sem comida. O tiro na nuca do prisioneiro russo que tropeçou. "Weitergehen!" Em Ribnitz, tiros da resistência. Giovanni rastejou para um bosque de faias, enterrando-se sob folhas mortas. Quando o silêncio voltou, o céu azul sem arames foi o primeiro milagre. Arrancou o triângulo vermelho. Cavou com as mãos nuas. Enterrou o número 117285 na terra úmida. Giovanni Lora renasceu ali — sem nome, sem pátria, apenas carne trêmula testemunhando o crepúsculo dos deuses.

O retorno a Vicenza em 1946 foi outro tipo de exílio. Plantou videiras onde antes só crescia morte. Mas as costelas quebradas doíam antes da chuva. Os pulmões guardavam o ácido dos banhos químicos. Nunca usou relógio — o tique-taque era o som dos Meisters cronometrando sua humanidade.

Hoje, quando minhas mãos tocam os tijolos de Dachau, não são apenas meus dedos que pressionam a superfície áspera. São as mãos de Giovanni, número 117285, fantasma de sangue e memória. O frio que sinto é o mesmo que congelou sua esperança nas madrugadas de Barth. O cheiro de cinzas é o aroma de sua fome crônica.

Descobri Giovanni em arquivos empoeirados. Mas foi ele quem me arrancou da complacência. Porque os campos não são ruínas. São espelhos. E no reflexo de Dachau, vejo não apenas o passado, mas o futuro que habita em cada gesto de indiferença, em cada justificativa para o injustificável.

A fotografia do bebê de cachecol vermelho está agora sobre minha escrivanária. Sorri através das décadas. E todas as manhãs, quando o despertador corta o silêncio às 4:30, por um instante infinito ainda sou o homem que enterra seu número na terra úmida da Pomerânia, enquanto o rugido dos fornos de Dachau ecoa nos ossos do mundo.

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